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30 de agosto de 2025

Os Miseráveis


Victor Hugo
Os Miseráveis (1862)

Não é possível resumir apropriadamente uma obra de cinco volumes, com mais de 1500 páginas em meia dúzia de linhas. É por certo uma obra imensa, em todos os sentidos, que se desenrola na França pós-napoleónica, entre 1815 e 1833, após as insurreições republicanas em Junho do ano anterior, que servem de cenário a parte importante da narrativa. Algures no segundo volume, Victor Hugo escreveu: «Este livro é um drama cujo primeiro personagem é o infinito. O segundo é o homem.» É um livro com a inabalável confiança novecentista no progresso e no futuro, no homem e nas virtudes da educação, que mostra um autor panfletário na defesa da Revolução Francesa e dos seus valores, partidário também de Napoleão — tal como um dos protagonistas do livro, o jovem Mário, com algumas características autobiográficas. Uma obra preocupada com questões sociais, com a iniquidade da justiça e o crime da lei, porque, como se sabe, o Direito é uma coisa e a Justiça outra. Assim, talvez não seja de admirar a referência directa, no quarto volume, a O Último Dia de um Condenado, «uma obra escrita com o mesmo fim», segundo aí afirma o próprio Victor Hugo, duas obras separadas por mais de três décadas mas com o mesmo tipo de preocupações.
À personagem principal, João Valjean, vão dar todas as outras, como os ramos de uma árvore levam ao tronco. Condenado às galés — por ter roubado pão para um sobrinho, o bebé da sua irmã, viúva e com sete filhos esfomeados a cargo, de quem ele era o principal sustento até ter ficado sem trabalho —, os cinco anos da pena, agravados devido a várias tentativas de fuga, transformaram-se em 19 anos. Quando foi libertado, a sua condição de ex-forçado tinha-o tornado num pária. Do seu encontro fortuito com um bispo, exemplarmente caritativo, opera-se um transformação interior em Valjean, que tomará para si o mais alto padrão ético. Mudando de nome e personalidade, todos os seus empreendimentos se vão orientar para a prática do bem e para o auxílio aos pobres, mas o passado pairará sempre ameaçador sobre o foragido à justiça, sujeito à pena perpétua por reincidência.
Dos miseráveis, referidos no título, encontram-se por aqui diferentes espécies: os miseráveis materialmente, o que potencia o seu arrastamento à miséria moral, por vezes capazes de um gesto sublime e redentor; os miseráveis que, não sendo necessariamente pobres, estão dispostos a roubar e a matar; os miseráveis que olham apenas por si, sem cuidar das consequências das suas acções sobre os outros; os que preferem viver na miséria em lugar de aceitar o dinheiro que os corrompe. E, por oposição, há também lugar ao amor, às personagens puras e inocentes, ou aos seres abnegados e heróicos, como Valjean, cuja consciência o impede de causar o mínimo dano a terceiros, mesmo que isso signifique voltar às galés.

Em certas costas da Bretanha ou da Escócia, sucede às vezes que um homem, viajante ou pescador, caminhando na baixa-mar pela plaga, longe de terra, de súbito dá conta que há muitos minutos experimenta certa prisão ao andar. O solo parece pez, em que se lhe agarram os sapatos, como se já não fosse areia, mas visco, o que os seus pés pisam. Afigura-se-lhe completamente enxuta a areia, mas a cada passo que ele dá, a cova que seus pés descreveram no chão enche-se de água. Nenhuma mudança, apesar disso, descobre a vista; a imensa praia continua lisa e tranquila, toda a areia tem o mesmo aspecto, nenhuma diversidade se nota entre a terra firme e a que já o não é; diante do viandante continua a saltar do mesmo modo a alegre nuvem dos pulgões marinhos. O homem segue o seu caminho, vai andando sempre, tomando para o lado da terra e procurando aproximar-se da costa, sem que, porém, o menor temor o sobressalte. Temor de quê? Todavia, sente o que quer que seja, como se os pés se lhe tornassem mais pesados a cada passo que dá. De repente, enterra-se. Enterra-se duas ou três polegadas. Decididamente, não vai pelo bom caminho; pára a orientar-se. De súbito, olha para o chão. Os pés desapareceram‑lhe debaixo de uma camada de areia. Tira-os, tenta retroceder, volta atrás, enterra-se ainda mais. Ao ver-se enterrado em areia até ao tornozelo, faz um esforço para tomar à esquerda, enterra-se até meio da perna; faz outro esforço, firmando-se para o outro lado, enterra-se até ao joelho. Então conhece, possuído de indizível terror, que se acha no meio de um areal movediço, em que ao homem é tão impossível andar como ao peixe nadar. Atira fora o que traz às costas, se traz alguma coisa, alija tudo o que o sobrecarrega, como o navio surpreendido pela tempestade, mas nada lhe vale, que a areia passa-lhe já acima do joelho.
Então chama e agita o chapéu ou o lenço, e, ao mesmo tempo, a areia mais e mais o submerge; se a praia se acha deserta, se ele está muito distante de terra, se o banco de areia goza de má nota, se não há heróis nos arredores, disse; o infeliz ali ficará submerso, condenado a essa horrorosa morte, demorada, infalível, inevitável, impossível de ser apressada ou espaçada, morte que dura horas, que parece não ter termo, que nos colhe de pé, livre e cheio de saúde, morte que nos puxa pelos pés, e a cada esforço que tentamos, a cada grito que elevamos, nos arrasta agora um pouco, logo mais, que parece punir-nos da nossa resistência, confrangendo-nos gradualmente, que lentamente obriga o homem a entranhar-se pela terra, sem o estorvar de contemplar o horizonte que vai deixar, o horizonte, as árvores, os campos esmaltados de verde, os tectos de colmo dispersos pela amplidão da planície, sobre os quais se elevam espirais de fumo, que se ramificam, se estendem e se dissipam no ar; sem vos estorvar de contemplar as velas dos navios ondulando além no mar, e as aves que esvoaçavam se cantam por cima de vós, indiferentes à imaginável angústia que lentamente vos absorve a vitalidade; sem vos estorvar de contemplar o Sol e o céu, sorrisos de Deus para as flores, esplendores de clarões em que se perdem e se ofuscam as trevas da vossa agonia.
Sabeis o que é morrer assim, privado de auxílio, tocando com os pés na morte e os braços na vida, respirando o ar, isto é, a vida; sentindo a pressão da areia molhada, isto é, a morte? Sabeis o que isto é? É a maré do sepulcro subindo das entranhas da terra a submergir aquele homem que está vivo: cada minuto é um coveiro inexorável. O infeliz tenta sentar-se, firmar-se nas mãos, desprender-se por qualquer modo, e cada movimento que faz no seu exasperado contorcer-se mais o enterra; ora se arranca à voragem, ora cai nela; tenta erguer-se, o abismo abre as fauces, mas logo as cerra com mais frenesi, como se quisesse deixá-lo livre por um instante, a cada esforço que ele faz, para mais ao largo o abocar na sua goela medonha. Ele ruge, implora, brada, contorce-se desesperado. Inútil esforço, baldado estrebuchar! Vede-o como se enterra em areia até ao ventre; vede-o como já esta lhe chega ao peito; livre da boca da voragem, resta-lhe aquilo que vedes — o busto! Ouvi-lhe as vozes sem conforto com que o desgraçado impele os ecos da praia; vede como ergue as mãos, como se expande em gemidos desesperados, cravando as unhas na areia, traidor apoio, que lhe foge com o seu auxílio, tentando agarrar-se ao que não tem consistência, fincando-se nos cotovelos para se tirar desse pego movediço, soluçando freneticamente; e a areia sempre a subir, subindo sem descanso, de contínuo, pouco a pouco, mas incessantemente. Ei-la que lhe cobre os ombros, ei-la que lhe chega ao pescoço; eis que já apenas o rosto é a única parte visível de todo ele. Gritava; encheu-se-lhe de areia a boca, emudeceu. Os olhos, vêem ainda, a areia fecha-lhos. Silêncio, depois trevas. Que resta ainda? Vedes-lhe um fragmento de testa. Lá desapareceu agora. Uma madeixa de cabelos redemoinhando na areia, ao sopro de uma lufada do mar. Lá se sumiu também. Esperai. Lá se agitou o que quer que fosse. É o derradeiro estertor? É isso e mais. Uma mão, que irrompe do chão, se move no ar e desaparece para sempre.


Li anteriormente:
Nossa Senhora de Paris (1831)
O Último Dia de um Condenado (1829) 

2 de maio de 2020

Nossa Senhora de Paris


Victor Hugo
Nossa Senhora de Paris (1831)

Notre-Dame de Paris, traduzido em português por Nossa Senhora de Paris e, mais recentemente por O Corcunda de Notre Dame (título tomado da versão em inglês), é, a par de Os Miseráveis, a mais conhecida obra do francês Victor Hugo. Autor de uma considerável bibliografia, contam-se apenas nove romances nessa lista, um deles escrito aos 16 anos, um ano antes de dar início à publicação de uma revista literária, de parceria com os irmãos Abel e Eugène.
Em Nossa Senhora de Paris, Victor Hugo vai narrando uma história em pequenos quadros que, com o avançar do livro, vão compondo um largo panorama onde as partes se vão ajustando, com alguma previsibilidade, diga-se. Passada em 1482, em Paris, o autor demora-se com prazer na descrição dessa cidade histórica, nesses espaços urbanos dos quais já quase nada restava no seu tempo, e, claro, da catedral de Notre-Dame que deu o título à obra. Há mesmo dois capítulos inteiros dedicados às descrições históricas e arquitectónicas da Catedral e da Paris medieval. Não sendo parisiense de nascimento, Victor Hugo revela uma afinidade pela cidade que está, talvez, explicado num atributo da personagem de Pedro Gringoire: «...o que lhe provocara um gosto violento pela arquitectura, inclinação que, no seu coração, substituíra a paixão pelo hermetismo, e de que aliás não passava de um natural corolário, visto existir íntima ligação entre a hermética e a maçonaria. Gringoire passara do amor por uma ideia para o amor pela forma dessa ideia.» Ou seja, a arquitectura como um livro de pedra, que se deixa ler por quem dominar o alfabeto.
Nossa Senhora de Paris, uma obra de imensa popularidade desde a sua época, é um marco da literatura romântica. Na base do romance histórico há uma história trágica de amor, cujo centro é Esmeralda, uma jovem cigana órfã, de extraordinária beleza, que perturbará o destino de quatro homens: Cláudio Frollo, o arcediago, de ascendência nobre e de uma inteligência notável, que acabará como um criminoso, fruto da sua obsessão doentia; Quasímodo, o sineiro da catedral, filho adoptivo do arcediago, sem ilusões devido às sua natureza disforme, basta-lhe apenas que a cigana tolere a sua presença; depois há Pedro Gringoire, um literato a quem a adversidade não dá tréguas, salvo da forca por Esmeralda num impulso de piedade; e, por último, Febo de Châteaupers, capitão da guarda real, o único que Esmeralda ama, mas que por ela sente apenas desejo, uma vez que está noivo de uma fidalga rica.

Se experimentássemos agora penetrar até à alma de Quasímodo, através dessa crosta espessa e dura, se pudéssemos sondar as profundezas desta mal feita organização, se nos fosse dado contemplar, com uma luz pelo lado de trás, esses órgãos sem transparência, explorar o interior tenebroso dessa criatura opaca, aclarar-lhe os recantos escuros, os becos absurdos de projectar, de repente, uma luz viva sobre a alma agrilhoada no fundo daquele antro, encontraríamos incontestavelmente a desgraçada numa triste situação, definhada e raquítica, como esses prisioneiros dos piombi de Veneza e que envelheciam, dobrados ao meio, numa caixa de pedra excessivamente baixa e acanhada.
É certo que o espírito se atrofia num corpo defeituoso. Quasímodo mal percebia que se movia às cegas dentro de si uma alma feita à sua imagem. A impressão dos objectos sofria uma refracção considerável antes de lhe alcançar o cérebro. Este cérebro era um ambiente especial: as ideias, que o atravessavam, saíam de lá todas deformadas. A reflexão proveniente dessa refracção era necessariamente divergente e quebrada. Por consequência, mil ilusões de óptica, mil aberrações de raciocínio, mil desvios onde o seu pensamento divagava, ora louco, ora idiota.
O primeiro efeito desta fatal organização era o de transtornar-lhe o olhar que lançava sobre as coisas. Não recebia delas quase nenhuma percepção imediata. O mundo exterior parecia-lhe muito mais afastado do que a nós.
O segundo efeito dessa sua desgraça foi a de torná-lo mesmo mau.
Efectivamente, era mau porque era selvagem e era selvagem porque era feio. Na sua índole, havia uma lógica tal como existe na nossa.
A força, que tão extraordinariamente se lhe desenvolvera, era mais uma causa da sua maldade. Malus puer robustus, dizia Hobbes.
Aliás, há que lhe prestar esta justiça: a maldade não era talvez inata nele. Desde que ensaiara os primeiros passos entre os homens, sentira-se e, depois, viu-se, vilipendiado, espezinhado, repelido. Para ele, a palavra humana era sempre uma caçoada ou uma maldição. Ao crescer, só encontrou hostilidades à sua roda. Apoderara-se dela. A maldade geral inoculara-se-lhe. Apanhou a arma com que o tinham ferido.
Para mais, só contrariado virava a cara para o lado dos homens. A sua catedral bastava-lhe. Ela povoava-se de figuras de mármore, de reis, de santos, de bispos, que, ao menos, não se lhe riam na cara e só tinham para ele um olhar sereno e benevolente. As outras estátuas, as dos monstros e dos demónios, não lhe afirmavam ódio. Pareciam-se de mais com ele para que tal sucedesse. Motejavam mais depressa dos outros homens. Os santos eram seus amigos e abençoavam-no; os monstros eram seus amigos e guardavam-no. Por isso, tinha prolongados desabafos com eles. Desta sorte, passava às vezes horas esquecidas, acocorado diante de uma dessas estátuas, a conversar solitariamente com ela. Se aparecia alguém, escapulia-se como um amante surpreendido numa serenata.

Li anteriormente:
O Último Dia de um Condenado (1829)