2 de maio de 2020

Nossa Senhora de Paris


Victor Hugo
Nossa Senhora de Paris (1831)

Notre-Dame de Paris, traduzido em português por Nossa Senhora de Paris e, mais recentemente por O Corcunda de Notre Dame (título tomado da versão em inglês), é, a par de Os Miseráveis, a mais conhecida obra do francês Victor Hugo. Autor de uma considerável bibliografia, contam-se apenas nove romances nessa lista, um deles escrito aos 16 anos, um ano antes de dar início à publicação de uma revista literária, de parceria com os irmãos Abel e Eugène.
Em Nossa Senhora de Paris, Victor Hugo vai narrando uma história em pequenos quadros que, com o avançar do livro, vão compondo um largo panorama onde as partes se vão ajustando, com alguma previsibilidade, diga-se. Passada em 1482, em Paris, o autor demora-se com prazer na descrição dessa cidade histórica, nesses espaços urbanos dos quais já quase nada restava no seu tempo, e, claro, da catedral de Notre-Dame que deu o título à obra. Há mesmo dois capítulos inteiros dedicados às descrições históricas e arquitectónicas da Catedral e da Paris medieval. Não sendo parisiense de nascimento, Victor Hugo revela uma afinidade pela cidade que está, talvez, explicado num atributo da personagem de Pedro Gringoire: «...o que lhe provocara um gosto violento pela arquitectura, inclinação que, no seu coração, substituíra a paixão pelo hermetismo, e de que aliás não passava de um natural corolário, visto existir íntima ligação entre a hermética e a maçonaria. Gringoire passara do amor por uma ideia para o amor pela forma dessa ideia.» Ou seja, a arquitectura como um livro de pedra, que se deixa ler por quem dominar o alfabeto.
Nossa Senhora de Paris, uma obra de imensa popularidade desde a sua época, é um marco da literatura romântica. Na base do romance histórico há uma história trágica de amor, cujo centro é Esmeralda, uma jovem cigana órfã, de extraordinária beleza, que perturbará o destino de quatro homens: Cláudio Frollo, o arcediago, de ascendência nobre e de uma inteligência notável, que acabará como um criminoso, fruto da sua obsessão doentia; Quasímodo, o sineiro da catedral, filho adoptivo do arcediago, sem ilusões devido às sua natureza disforme, basta-lhe apenas que a cigana tolere a sua presença; depois há Pedro Gringoire, um literato a quem a adversidade não dá tréguas, salvo da forca por Esmeralda num impulso de piedade; e, por último, Febo de Châteaupers, capitão da guarda real, o único que Esmeralda ama, mas que por ela sente apenas desejo, uma vez que está noivo de uma fidalga rica.

Se experimentássemos agora penetrar até à alma de Quasímodo, através dessa crosta espessa e dura, se pudéssemos sondar as profundezas desta mal feita organização, se nos fosse dado contemplar, com uma luz pelo lado de trás, esses órgãos sem transparência, explorar o interior tenebroso dessa criatura opaca, aclarar-lhe os recantos escuros, os becos absurdos de projectar, de repente, uma luz viva sobre a alma agrilhoada no fundo daquele antro, encontraríamos incontestavelmente a desgraçada numa triste situação, definhada e raquítica, como esses prisioneiros dos piombi de Veneza e que envelheciam, dobrados ao meio, numa caixa de pedra excessivamente baixa e acanhada.
É certo que o espírito se atrofia num corpo defeituoso. Quasímodo mal percebia que se movia às cegas dentro de si uma alma feita à sua imagem. A impressão dos objectos sofria uma refracção considerável antes de lhe alcançar o cérebro. Este cérebro era um ambiente especial: as ideias, que o atravessavam, saíam de lá todas deformadas. A reflexão proveniente dessa refracção era necessariamente divergente e quebrada. Por consequência, mil ilusões de óptica, mil aberrações de raciocínio, mil desvios onde o seu pensamento divagava, ora louco, ora idiota.
O primeiro efeito desta fatal organização era o de transtornar-lhe o olhar que lançava sobre as coisas. Não recebia delas quase nenhuma percepção imediata. O mundo exterior parecia-lhe muito mais afastado do que a nós.
O segundo efeito dessa sua desgraça foi a de torná-lo mesmo mau.
Efectivamente, era mau porque era selvagem e era selvagem porque era feio. Na sua índole, havia uma lógica tal como existe na nossa.
A força, que tão extraordinariamente se lhe desenvolvera, era mais uma causa da sua maldade. Malus puer robustus, dizia Hobbes.
Aliás, há que lhe prestar esta justiça: a maldade não era talvez inata nele. Desde que ensaiara os primeiros passos entre os homens, sentira-se e, depois, viu-se, vilipendiado, espezinhado, repelido. Para ele, a palavra humana era sempre uma caçoada ou uma maldição. Ao crescer, só encontrou hostilidades à sua roda. Apoderara-se dela. A maldade geral inoculara-se-lhe. Apanhou a arma com que o tinham ferido.
Para mais, só contrariado virava a cara para o lado dos homens. A sua catedral bastava-lhe. Ela povoava-se de figuras de mármore, de reis, de santos, de bispos, que, ao menos, não se lhe riam na cara e só tinham para ele um olhar sereno e benevolente. As outras estátuas, as dos monstros e dos demónios, não lhe afirmavam ódio. Pareciam-se de mais com ele para que tal sucedesse. Motejavam mais depressa dos outros homens. Os santos eram seus amigos e abençoavam-no; os monstros eram seus amigos e guardavam-no. Por isso, tinha prolongados desabafos com eles. Desta sorte, passava às vezes horas esquecidas, acocorado diante de uma dessas estátuas, a conversar solitariamente com ela. Se aparecia alguém, escapulia-se como um amante surpreendido numa serenata.

Li anteriormente:
O Último Dia de um Condenado (1829)

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