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13 de outubro de 2017

Música ao Longe

Érico Veríssimo
Música ao Longe (1935)

Sobre Música ao Longe, é o próprio Érico Veríssimo quem, no Prólogo, datado de 1961, o considera um livro medíocre, apressado (foi escrito em menos de um mês para concorrer a um prémio literário), embora não desprovido de méritos. O tema, diz, poderia ter comportado uma certa grandiosidade, e a história exigia um tratamento sério e de certa profundidade. A razão disto, segundo o autor, deve-se ao facto de ter recorrido ao diário da jovem Clarissa, sem experiência suficiente para avaliar o drama da família, nem para compreender as suas causas profundas.
Clarissa é a mesma personagem do livro de 1933, agora regressada a Jacarecanga como professora recém-formada. O drama da sua família – os Albuquerques, outrora poderosos e ilustres –, mais do que o aperto financeiro, pois o pai perdeu terras e gado, restando-lhe apenas a casa que acabará por hipotecar, é também o da decadência física e moral dos seus parentes. Música ao Longe é o confronto do desencanto pessoal de Clarissa, a jovem adulta na posse de um novo entendimento, vertido no diário, com os dias despreocupados da sua infância. São os horizontes estreitos da sua terra, que lhe prometem uma vida para a qual não consegue encontrar sentido, e Vasco, o primo considerado a ovelha-negra da família que aguarda o momento certo para partir dali. Entre os dois nascerá uma certa cumplicidade, originada no entendimento mútuo e no desconforto que a ambos assola.
Este livro acabou por ganhar o Prémio de Romance Machado de Assis, instituído em 1934, ao qual concorreu; se todos os livros “medíocres” fossem como este, certamente não ficávamos mal servidos.

Nicolina entra trazendo os pires com compota de pêssego.
— Não tem outra sobremesa? — pergunta João de Deus.
— Esta é a única.
— Por que não mandas buscar uma goiabada ali no Café do Pires?
O olhar de D. Clemência é uma resposta eloquente. João de Deus compreende.
— Ele também não quer fiar?
A mulher sacode afirmativamente a cabeça.
João de Deus empurra o prato, amarfanha o guardanapo com uma expressão de raiva na cara bronzeada, ergue-se de repente e começa a passear dum lado para outro, resmungando:
— Corja! Me negarem crédito... Logo pra mim! Pra mim!
Cleonice, de cabeça baixa, come a sua compota. D. Clemência olha para o marido. Clarissa nem ousa erguer os olhos.
Como uma fera enjaulada, João de Deus caminha da mesa até a janela, com as mãos nos bolsos e a cabeça baixa. Vai e volta, de lá pra cá, de cá pra lá...
— Patifes! O velho Olivério já matou a fome de toda essa cachorrada e agora um filho dele não tem crédito nem para uma lata de goiabada! Patifes!
D. Clemência sacode a cabeça abandonadamente. Cleonice pede mais uma metade de pêssego.
— O Pires! — continua a resmungar o bisneto do general Zé Pedro. — O Pires que andava de roupa rasgada. Papai chamou ele, deu casa, deu comida e depois ainda por cima emprestou dinheiro pra esse ordinário se estabelecer. Sim senhor! Hoje vai-se buscar uma lata de goiabada e ele diz: "Não se fia!" O Pires!
— Mas, João de Deus — observa a mulher — o coitado tem razão, já devemos cinco meses de fornecimento, também o homem não pode viver de promessas...
João de Deus estaca de repente. Olhos chispantes, ele cresce para a mulher:
— Tu também? Dando razão àquele porco? Era só o que faltava! O Pires!

Li anteriormente:
Caminhos Cruzados (1935)
Clarissa (1933)
Olhai os Lírios do Campo (1938)

7 de xaneiro de 2017

Caminhos Cruzados

Érico Veríssimo
Caminhos Cruzados (1935)

Caminhos Cruzados é o segundo romance de Érico Veríssimo. Dividido em cinco partes, cada uma com o nome dos dias da semana de sábado a quarta-feira, subdivide-se depois em capítulos breves que acompanham a vida diária e as pequenas peripécias que sucedem aos seus protagonistas. Deste modo, acompanhamos gente e famílias de todos os estratos sociais, como o professor Clarimundo, que um dia há-de escrever um livro a descrever a verdade das coisas mas, por enquanto, anda a magicar no que será o prefácio; Chinita, a filha do novo-rico coronel Pedrosa, com a cabeça à roda numa vida fútil onde se tenta comparar ao que julga ser a vida das estrelas de Hollywood; Teotônio Leitão Leiria, um burguês abastado de modos ridículos; a desgraça de Maximiliano, tuberculoso entre a vida e a morte; João Benévolo, amante de leituras e de ilusões, caído no desemprego e sem dinheiro, vê a miséria montar o cerco à sua família. Entre tanta gente, destacam-se duas mulheres que, pela sua força interior, escapam a este descritivo quase caricatural: Fernanda, por oposição ao apagamento de Noel, seu amigo de infância, e D. Maria Luísa, a mulher do coronel Pedrosa, que cedo se apercebe que o dinheiro não traz a felicidade. Na impessoalidade da grande cidade, por vezes, os caminhos destas personagens cruzam-se, as decisões de uns afectam outros, justificando o título.

Mas um dia Zé Maria sonhou que a casa do coletor tinha prendido fogo e que o Madruga havia morrido queimado. Levantou-se, impressionado. Estava-se em véspera de Natal, a Loteria do Estado anunciava uma extração de dois mil contos. Zé Maria foi olhar a casa do coletor. Tinha o número 1063. Tomou uma resolução heróica. Uma vez na vida e outra na morte não fazia mal arriscar... Desgraça pouca é bobagem. Juntou a féria de três dias e foi à Agência de Loteria do Bianchi.
— O 1063 não tem... — disse o italiano.
Zé Maria ficou amolado.
— Encomende. Pago telegrama, pago tudo.
Estava nervoso. O Bianchi telegrafou. A resposta veio. O 1063 já estava vendido, mas o 3601 estava livre. Servia?
— Servia! Mande buscar urgente.
Em casa ninguém sabia de nada. O 3601 veio. Zé Maria andava preocupado. Algumas firmas ameaçavam protestar duplicatas vencidas e não pagas. O negócio estava meio parado.
Um dia Zé Maria não agüentou aquela coisa esquisita que se lhe avolumava no peito, aquela angústia, aquele peso. Contou tudo à mulher. Tinha comprado um bilhete!
— Um bilhete inteiro? Inteiro?
D. Maria Luísa levou as mãos à cabeça. Zé Maria estava aniquilado.
— Quanto custou?
— Trezentos...
D. Maria Luísa enxergava, via com nitidez os trezentos mil-réis diante dos olhos. Sentiu uma tontura. Foi para o quarto e chorou toda a tarde.
Na véspera de Natal ao anoitecer estralaram foguetes lá para as bandas da praça.
Zé Maria apareceu à porta da loja.
— É na agência do Bianchi — disse uma voz.
Assomavam cabeças às janelas. Corria gente para a rua. Contra o céu claro faiscavam os foguetes que explodiam, e as pequenas nuvens de fumaça ficavam no ar por alguns instantes...
O coração de Zé Maria começou a bater com mais força. Enfiou o chapéu na cabeça e saiu.
— Deve ser a bruta! — gritou-lhe alguém.
Zé Maria caminhava como um ébrio, os olhos turvos, a cabeça tão tonta que nem podia pensar. A uma esquina encontrou o Madruga.
— Onde vais com tanta pressa, homem?
Zé Maria afastou-o com a mão.
— Me deixa.
Madruga ficou rindo, o palito tremeu-lhe nos lábios.
— Pensas que tiraste a sorte grande, animal?
Na frente da agência do italiano Bianchi havia gente amontoada, procurando ler o número escrito no quadro-negro. Bianchi, rindo com toda a cara vermelha e enrugada, emergiu da maçaroca humana e correu para Zé Maria, de braços abertos:
— Felizardo! Felizardo! A bruta!
Zé Maria negava-se a compreender, a acreditar. Era demais. Aquilo não lhe podia acontecer. Ah! Não podia.
— Mas é a bruta. Dois mil contos! Eu mandei na loja lhe avisar!
Diante dos olhos do coronel tudo dançava: o italiano, as árvores, as pessoas... Os foguetes continuavam a subir para o céu e estouravam lá em cima, provocando ecos atrás da igreja. Agora em torno de Zé Maria havia muitas pessoas, conhecidas umas, desconhecidas outras. Ele tinha vontade de gritar. Sons confusos lhe chegavam aos ouvidos: — Parabéns! Felizardo! Qual foi o número? Nasceu empelicado! Sim senhor!
Depois que se livrou dos abraços da primeira hora, examinando com os próprios olhos o telegrama que trouxera o resultado da extração; depois que bebeu um copo d'água fria é que Zé Maria começou a se habituar à realidade maravilhosa. Quando serenou, o seu primeiro pensamento foi para o amigo: “Eu só quero é ver a cara do Madruga.” E viu. Madruga chegou, fingindo indiferença.
— Ouvi dizer que tiraste a sorte grande.
O sorriso largo de Zé Maria era uma confirmação. Madruga segurou o palito, fleumático, fez uma careta de dúvida e disse:
— Não sei se te felicito... Bem diz o ditado que a fortuna é cega. Deus às vezes dá osso pra cachorro sem dente. Dentro de dois anos não tens mais um miserável níquel. Por falar nisto, me empresta vinte mil-réis.
Zé Maria tirou do bolso uma cédula de cinqüenta.
— Leva cinqüenta! Estou louco da vida.

Li anteriormente:
Clarissa (1933)
Olhai os Lírios do Campo (1938)
O Tempo e o Vento, vol. III – O Arquipélago (1962)

16 de xullo de 2016

Clarissa

Érico Veríssimo
Clarissa (1933)

Érico Veríssimo foi, para mim, a melhor descoberta da literatura brasileira. Gostei sobretudo do tríptico O Tempo e o Vento, de uma dimensão épica, uma epopeia familiar entretecida na própria História da sua pátria, comparável a um Guerra e Paz. Já Clarissa é completamente diferente: trata-se do primeiro romance de Veríssimo, com o nome que viria a dar à sua primeira filha.
Clarissa é a história de uma adolescente a completar 14 anos, filha de agrários, no seu último ano de escola, à descoberta da vida. Vive na cidade, com a tia D. Eufrasina, proprietária de uma pensão, e ali se assiste ao desfilar das personagens secundárias que com ela se cruzam: O Tio Couto, desempregado e, aparentemente, pouco amigo do trabalho, permanentemente a zurzir no governo; Nico Pombo, o major reformado que conta e reconta as suas velhas histórias de guerra; Amaro, o apagado e ausente empregado bancário e compositor frustrado; Tonico, o menino inválido da casa ao lado, cuja deficiência tolhe até os seus sonhos; Dudu, a desinibida amiga de Clarissa, detestada por D. Zina que a considera uma “desfrutável”; as eternas discussões entre Levinsky, o judeu marxista, e o farmacêutico protestante Gamaliel; e todas as peripécias que, com frescura e algum humor, Érico Veríssimo vai alinhando nesta novela despretensiosa.

— Clarissa, vem prà mesa!
A voz aguda de D. Eufrasina apaga impiedosamente a imagem do palhaço e do cortejo de moleques. Amaro volta à tona...
— Que história é essa? — pergunta Tio Couto. — O seu Amaro está enjoando a nossa comida?
Só agora Amaro percebe que nem tocou nos talheres. Balbucia desculpas.
Estava esquecido até do almoço. Sempre o velho vício. Sonhando, devaneando, enquanto os outros conversam, gesticulam, vivem de verdade. É por isso que não há-de passar nunca de simples funcionário de banco. A música não lhe dá dinheiro. Os editores sempre vêm com a mesma desculpa:
— Nós sabemos que o senhor tem talento, que sabe compor, mas infelizmente o nosso público quer é sambas e fox-trotes. Escreva uma marchinha para o Carnaval que vem, um samba ou coisa que o valha e nós editaremos a música por nossa conta.
Nestas ocasiões Amaro pensava sempre no carão severo e inflexível de Beethoven. E tinha vontade de dizer num cicio de oração: «Mestre, não faça caso, eles não sabem o que dizem...»
E assim vivia ele dentro do sonho, alheio ao mundo objectivo. Perdia aquilo a que os homens práticos chamam oportunidade. Cumpria o seu destino obscuro, de contemplativo.
Mas ia ficando para trás: sem dinheiro, sem amigos, sem glória, sem nada — na sombra: uma vida mais apagada que a do Micefufe, o gato da casa. Porque o Micefufe, enfim, se afirma: luta contra os camundongos; luta e vence-os. O Micefufe anda pelos telhados nas noites de lua e ama as gatas da vizinhança.
— Se o senhor, seu Amaro, não fosse tão distraído, seria um óptimo funcionário. Tem até uma letra muito boa...
Só de pensar na opinião do contador do banco, Amaro sente um mal-estar desconfortante. Quando terminará o conflito? Conflito com a vida, com os homens que andam pela vida a se magoarem uns aos outros, a disputar lugares aos encontrões e cotoveladas? Cada dia que passa é uma tortura que se repete. O expediente do banco, o tá-tá-tá das máquinas de escrever, os cavalheiros que discutem juros de mora, taxas, câmbios; contínuos que passam com pastas gordas de papéis cheios de algarismos; e homens inclinados sobre as carteiras, escrevendo, registando, calculando... E a fúria de uns para conseguirem juros mais vantajosos, e o desespero de outros por não poderem pagar os títulos vencidos, e as ameaças de protesto, e mais juros, e mais cálculos, e números, números, números, afogando, esterilizando, complicando, matando.
Só de pensar naquelas coisas Amaro sente arrepios.

Li anteriormente:
Olhai os Lírios do Campo (1938)
O Tempo e o Vento, vol. III – O Arquipélago (1962)
O Tempo e o Vento, vol. II – O Retrato (1951)