20 de abril de 2024

O Calafrio


Henry James
O Calafrio (1898)

O Calafrio é o título português de The Turn of the Screw, também conhecido noutras traduções por A Volta do Parafuso. A novela foi publicada originalmente em 1898, acompanhada de Covering End, num livro intitulado The Two Magics. Qualificada como “novela gótica” tem, de facto, uma temática sobrenatural, desenvolvida de um modo não muito convencional, que narra a história de uma jovem preceptora, contratada por um cavalheiro londrino para acompanhar dois sobrinhos, Miles e Flora, durante as férias do Verão, em Bly, uma propriedade na província, com a indicação expressa de decidir todos os assuntos como bem entender e não recorrer, em caso algum, à sua pessoa. Chegada ao local, a preceptora vai-se apercebendo que os irmãos, de beleza angelical e comportamento exemplar, encontram-se sob o sortilégio de dois fantasmas: um antigo empregado da mansão e a preceptora que a antecedeu. Enfrentando uma cumplicidade de silêncios e horrores nunca verbalizados, a preceptora assume o desafio de romper a ligação maligna ali existente, ao mesmo tempo que a pressão da responsabilidade quase a conduz à quebra e à desistência.

Recordo-me de essa figura ter produzido em mim, ao revelar-se assim naquele crepúsculo luminoso, dois choques distintos de emoção: uma primeira e uma segunda surpresa. Esta última foi a constatação do erro que fora a primeira: o homem que eu tinha diante dos olhos não era aquele que eu, na minha precipitação, primeiramente imaginara. Isto causou-me uma tal confusão como nenhuma outra coisa me causou até hoje. Ver um desconhecido, num lugar isolado, causa medo a qualquer jovem educada e recatada; e a figura que eu via diante dos olhos, verifiquei-o em poucos segundos, não era de modo algum a imagem que tinha na minha mente. Não a vira em Harley Street, nunca a vira em parte alguma. Além disso, aquele local, só pelo facto desta presença, tornou-se, subitamente, sem que eu soubesse porquê, um local desolado. Pelo menos para mim, ainda hoje, no momento em que escrevo estas linhas, revivo essa sensação. Era como se o resto do cenário tivesse sido ferido de morte. Parece-me ainda que escuto o súbito silêncio que envolveu todos os ruídos da tarde. As gralhas pararam de crocitar no céu doirado, e aquela hora deliciosa perdeu instantaneamente toda a sua voz. Contudo, a natureza não sofrera nenhuma outra alteração a não ser aquela de que me apercebi com um espanto ainda maior. O céu continuava doirado, o ar transparente e o homem que me fitava do alto das muralhas era tão real como um quadro na sua moldura. Foi por isso que me recordei, com extraordinária rapidez, de todas as pessoas que ele poderia ser... mas não era. Contemplamo-nos à distância durante o tempo suficiente para eu perguntar a mim própria, com toda a intensidade, quem ele seria e de sentir, perante a minha incapacidade de o saber, um espanto cada vez maior.

Li anteriormente:
Daisy Miller (1878)

17 de abril de 2024

The British Barbarians


Grant Allen
The British Barbarians (1895)

Cheguei a este livro devido a numa nota de rodapé de A Máquina do Tempo de H.G. Wells, acerca da transcrição de uma citação de Grant Allen; a nota do tradutor apontava para a curiosidade de The British Barbarians ter sido editado no mesmo ano, tendo por tema uma situação inversa: um viajante do século XXV chegava à Inglaterra do século XIX. Na posse desta informação é fácil deduzir que Bertram Ingledew é o tal viajante (só no último capítulo o seu segredo é desvendado), apresentado como um estranho que chega a Brackenhurst, um arrabalde burguês ao sul de Londres, sem qualquer noção das normas sociais em vigor. Assim, após Philip Christy, um escriturário funcionário público, tê-lo apresentado a contragosto no seu meio familiar e comunitário, Bertram vai fazendo uma crítica modernista das convenções sociais victorianas, ridicularizando-as como “tabus” e “fetiches”, traçando paralelos com outros tabus existentes em sociedades primitivas de África ou das ilhas do Pacífico.
Grant Allen, nascido no Canadá mas educado em Inglaterra, começou por escrever trabalhos científicos mas em breve se voltou para a ficção, tendo publicado cerca de 30 novelas entre 1884 e 1899, ano da sua morte, das quais se destaca The Woman Who Did, também de 1895, cujo enredo sobre o casamento e o papel da mulher o envolveu em escândalo e se tornou num best-seller.
É demasiado fácil perceber onde Grant Allen quer chegar com The British Barbarians, apresentado ilusoriamente como um pioneiro da FC. Talvez não fosse de esperar outra coisa de um escritor ateu e socialista no final do séc. XIX; contudo, outros autores da mesma época, com convicções semelhantes, têm obras bem mais interessantes – H.G. Wells, por exemplo. O excerto pertence à Introdução, que contém as páginas mais significativas e elucidativas do livro.

Most novels nowadays have to run as serials through magazines or newspapers; and the editors of those periodicals are timid to a degree which outsiders would hardly believe, with regard to the fiction they admit into their pages. Endless spells surround them. This story or episode would annoy their Catholic readers; that one would repel their Wesleyan Methodist subscribers; such an incident is unfit for the perusal of the young person; such another would drive away the offended British matron. I do not myself believe there is any real ground for this excessive and, to be quite frank, somewhat ridiculous timidity. Incredible as it may seem to the ordinary editor, I am of opinion that it would be possible to tell the truth, and yet preserve the circulation. […] 

The romance that appeals to the average editor must say or hint at nothing at all that is not universally believed and received by everybody everywhere in this realm of Britain. But literature, as Thomas Hardy says with truth, is mainly the expression of souls in revolt. Hence the antagonism between literature and journalism. 

Why, then, publish one's novels serially at all? Why not appeal at once to the outside public, which has few such prejudices? Why not deliver one's message direct to those who are ready to consider it or at least to hear it? Because, unfortunately, the serial rights of a novel at the present day are three times as valuable, in money worth, as the final book rights. A man who elects to publish direct, instead of running his story through the columns of newspaper, is forfeiting, in other words, three quarters of his income. This loss the prophet who cares for his mission could cheerfully endure, of course, if only the diminished income were enough for him to live upon. But in order to write he must first eat. […] 

That, too, is the reason that impels me to embody such views as these in romantic fiction, not in deliberate treatises. “Why sow your ideas broadcast,” many honest critics say, “in novels where mere boys and girls can read them? Why not formulate them in serious and argumentative books, where wise men alone will come across them?” The answer is, because wise men are wise already; it is the boys and girls of a community who stand most in need of suggestion and instruction. Women, in particular, are the chief readers of fiction, and it is women whom one mainly desires to arouse to interest in profound problems by the aid of this vehicle. Especially should one arouse them to such living interest while they are still young and plastic, before they have crystallised and hardened into the conventional marionettes of polite society. Make them think while they are young; make them feel while they are sensitive: it is then alone that they will think and feel, if ever. I will venture, indeed, to enforce my views on this subject by a little apologue which I have somewhere read, or heard,—or invented. […] 

The business of the preacher is above all things to preach; but in order to preach, he must first reach his audience. The audience in this case consists in large part of women and girls, who are most simply and easily reached by fiction. Therefore, fiction is to-day the best medium for the preacher of righteousness who addresses humanity.

15 de abril de 2024

La Última Etapa de la Globalización


Federico Rivanera Carlés
La Última Etapa de la Globalización (2010)

O historiador argentino Federico Rivanera Carlés tem uma série de livros dedicados à análise do judaísmo (recomenda-se, de passagem, um vídeo no youtube, da TLV1, onde dá a sua opinião sobre o presidente Javier Milei). La Última Etapa de la Globalización: El Gobierno Mundial Judio faz a história da ascensão do poder judeu desde o séc. XVI e, mais abertamente, desde a Revolução Francesa, através de uma aliança entre o poder financeiro e a subversão. Um processo que seguiu várias fases históricas – a democracia capitalista, o bolchevismo, o sionismo – onde a preponderância e protagonismo dos judeus no desenrolar destes processos foi determinante, sem perder de vista o fim último da sua actuação: um destino messiânico de domínio global, que se lê claramente nas inúmeras citações e textos deixados por pensadores e políticos judeus desde o séc. XIX. Apoiados nos preceitos talmúdicos, exclusivistas e racistas – o autor nota que, mais que uma religião, é um programa político –, o judaísmo tem triunfado, ocultando sempre que necessário a sua verdadeira natureza, contando com a indispensável colaboração de uma imensa teia de influências. Dos instrumentos ao seu serviço merece destaque a judaização da Igreja pós-conciliar, ou a formação da União Europeia, entre os mais notáveis.
La Última Etapa de la Globalización é um livro no qual se desmonta a propaganda do globalismo e se expõem os objectivos finais da chamada Nova Ordem Mundial.

En sentido coincidente, a comienzos de la centuria pasada el anarquista judío Rudolf Kayser señaló que para llegar a la era mesiánica había que abolir el Estado, tarea en la cual los judíos cumplirían un papel esencial debido a que carecen del mismo, y porque "la idea de Estado es una noción no judía". El internacionalismo es connatural a los judíos porque son un pueblo nómada. "Goy, en cambio, observa Barylko, nace de una raíz que significa cuerpo, la gente constituida en cuerpo, en sociedad, en estado, en un orden fijo e inmutable". El internacionalismo de los judíos se complementa a la perfección con su objetivo mesiánico: para construir el "gran edificio" mesiánico –observa el afamado rabino Elías Benamozegh– Dios ha creado "un pueblo internacional, Israel". De ahí que los judíos sean los teóricos y propagandistas del mundialismo por antonomasia. Al respecto el prestigioso escritor judío Bergman observa que, "cuando se rompieron las barreras sociales y políticas en el siglo XIX, los pensadores judíos estuvieron entre los representantes más radicales del internacionalismo y de la idea de humanismo. Parece que después de dos mil años el universalismo y el humanismo de los profetas florecieron en las figuras de millares de filósofos judíos, socialistas e internacionalistas". Y estima también que "el estado soberano, la bandera, la raza" no son más que ídolos. 

El plan judío está en marcha acelerada a través de la Masonería –fundada y dirigida por los judíos–, y los propulsores del internacionalismo, a saber, el capitalismo demoliberal, el marxismo y el anarquismo, en sus diversas variantes. También existen poderosas organizaciones mundialistas donde los judíos y masones tienen relevante papel, como el Royal Institute of International Affairs (RIIA), fundado en Londres, en 1919; el Council of Foreign Relations (CFR), denominación adoptada por el anterior en los Estados Unidos, donde fue organizado el año 1921, en la ciudad de Nueva York; el Club Bilderberger, que nuclea a la alta finaliza, a grandes empresarios, políticos e intelectuales liberales y marxistas, se creó en 1954 en Holanda a instancias del CFR; la Trilateral Commission, formada en 1972, que agrupa igualmente a plutócratas, políticos e ideólogos demócratas y marxistas, etc., de EE. UU., Europa y Japón. Entre sus promotores se halla el influyente Consejero de Seguridad Nacional de James Carter y directivo del CFR, Zbigniew Brzezinki, judío polaco naturalizado estadounidense en 1958. 

El plan mundialista cuenta con un aliado importantísimo: la Iglesia neojudía surgida del infausto Concilio Vaticano II, el cual pudo realizarse, sin duda, por la victoria del judaísmo internacional en 1945 por medio de la alianza demoplutocrática-soviética. La concepción de la Iglesia Postconciliar sobre la irrevocabilidad de la elección de Israel y de las promesas inherentes, lleva inevitablemente –como en el dispensacionalismo y el protestantismo modernista– al reino mesiánico, i.e., al Estado mundial judío. La necesidad de un gobierno universal fue expuesta por primera vez en la encíclica Pacem in terris (11-IV-1963), y desde entonces es una de las metas oficiales de la Iglesia Católica Postconciliar.

[...]

El sionismo se halla ligado simultáneamente al movimiento subversivo mundial y al capitalismo demoliberal, el cual, dígase lo que se diga, pertenece también a dicho movimiento pues ha sido el primer estadio de la subversión del ordenamiento natural y cristiano de la sociedad. El capitalismo, dominado completamente por los hebreos, ha financiado, sostenido y respaldado al sionismo desde sus orígenes, y en el plano ideológico es notoria la identidad de éste con el marxismo y el anarquismo, en cualquiera de sus variantes. "Es obvio, señala, Wistrich, que para los padres fundadores de la moderna Israel la revolución sionista se extendía más allá del reino de la política y de la creación de un estado como fin en sí. El renacimiento nacional judío era concebido no sólo como un movimiento de vanguardia del pueblo judío, sino como un batallón integrado, aunque diferenciado, dentro de un ejército internacional [...] El renacimiento nacional judío era para Ben Gurión parte de un tremendo movimiento que envuelve a toda la humanidad: la revolución mundial". 

De esto se desprende que la concreción de los objetivos mesiánicos está supeditada al triunfo del ejército internacional de la Revolución Mundial, cuya dirección ejercen los judíos, ya que aparte del "batallón" sionista, sus hermanos de raza comandan los restantes que operan en el seno de las naciones gentiles. La caída de la URSS y sus satélites, así como la desaparición de los partidos bolcheviques en gran parte del mundo, no ha detenido la Revolución Mundial en razón de que el marxismo nutre la ideología de la socialdemocracia, una de las fuerzas dominantes en las democracias, a la que se han incorporado presurosos no pocos partidos bolcheviques. Por otra parte, la Revolución Mundial, repito, engloba a las naciones democapitalistas, tradicionales impulsoras del mundialismo, y a la Masonería –y sus colaterales el Rotary Club, el Club de Leones, etc.–, cuyo decisivo protagonismo respecto al gobierno mundial ya se ha visto, así corno al Club Bilderberger, la Trilateral Commission, el Council of Foreign Relations, el Royal Institute of International Affairs, etc. Va de suyo que el proceso mesiánico se definirá fuera del Estado de Israel, por medio de "el internacionalismo mesiánico de la Diáspora". 

El papel que desempeña el sionismo pone en evidencia el grueso equívoco en que incurren quienes lo diferencian del judaísmo, como si fuera posible concebir su existencia fuera de éste. Por otro lado, la minoría judía que se opone al sionismo lo hace por razones tácticas y no por disensiones en torno a los fines del judaísmo.

10 de abril de 2024

Death In June – Misery And Purity


Robert Forbes
Death In June – Misery And Purity (1995)

Death In June – Misery And Purity é um livro sobre a banda inglesa de industrial e neofolk Death In June, formada em 1981 por Douglas Pearce e Tony Wakeford, que tinham tocado anteriormente nos Crisis. O autor afirma ter baseado a escrita em artigos seus anteriormente publicados nos fanzines Fractured e Impulse, e pretende fazer a história e uma interpretação pessoal dos DIJ até à data, finais de 1994, quando a edição de “Rose Clouds Of Holocaust” estava agendada e o alinhamento dos temas era já conhecido. Contém ainda uma listagem completa da discografia e um capítulo final dedicado aos Crisis. O livro é, portanto, uma história pormenorizada da banda, desde os seus inícios, com excertos de entrevistas dadas pelos músicos ao longo dos anos, citações da imprensa musical, reproduções fac-símile de artigos, folhetos e outro material impresso, a perspectiva do autor sobre o significado e contextualização das letras/poemas, sempre ambíguos e complexos, as capas dos discos e outros motivos de interesse em redor da banda. No fundo, o livro de um fan dirigido aos outros fans, mas feito com profissionalismo e esmero.

‘Fields Of Rape’ lost its sinister air for me on listening to the original version of this song on Current 93’s excellent “Dogs Blood Rising” LP which makes it quite clear that the word rape refers to the yellow Eurasian plant cultivated for its seeds and not the unlawful act of sexual intercourse against that person’s will. It’s not recorded anywhere how this particular collaboration between Tibet and Death In June came about, but I can only guess that Douglas P. had been so impressed by some of the lyrics to this song that he wanted to use them set to his own music. And while the version that appears on “Nada!” is not my favourite one, it is preferable to the original long industrial sounding nightmare as performed by Current 93. I’m unsure where Tibet drew inspiration for these lyrics, but a certain Isidore Ducasse is said to appear in the line up of C93 on “Dogs Blood Rising”. This in fact was the real name of Comte de Lautreamont who wrote the book “Maldoror”. It’s a real shot in the dark, but is ‘Fields Of Rape’ inspired in part by this book? 

[…] 

“Brown Book” seems much more sinister and darker than “The World That Summer” which might reflect Douglas P’s growing resignation and a preoccupation with death I believe he had at that time. Douglas P. said in Attitude Incertaine #1 that he feels a real repugnance for death. (The fanzine I think came out in 1988 but most of the interview revolves around “Brown Book”.) And partly because of this he started to feel very uneasy about the name Death In June simply because death is mentioned in it. Possibly a picture is starting to form for us of Douglas P’s state of mind during the recording of this LP. This preoccupation is possibly continued in the statement scratched into the end grooves “A holy death for Douglas” and in the first track on this LP, ‘Heilige Tod’ (Holy Death), which is just those two words repeated by Rose McDowall and John Balance without the accompaniment (or hindrance) of musical instruments. 

The predominant instrument throughout this LP is the acoustic guitar and there was a reason behind this new musical angle as Douglas P. explained in Fear And Loathing #9:- “I think that way it approaches the purity of what we want to do in a much better way.” That attaining of purity is unmistakable. In a French interview, Douglas P. remarked:- “I like the sound of misery and purity.” Both are to be found on “Brown Book”.

6 de abril de 2024

Eurico, o Presbítero


Alexandre Herculano
Eurico, o Presbítero (1844)

Eurico o Presbytero é uma narrativa que decorre no século VIII, entre os últimos dias da Hispânia visigótica, caída aos pés dos sarracenos, e o seu renascimento, onze anos depois, com Pelágio, em Covadonga. Eurico, a personagem principal, entrou no clero depois de um amor impossível, e transforma-se no cavaleiro negro após a invasão árabe, um combatente temerário nos campos de batalha; no final, volta a ser confrontado com o seu amor, separado agora pelos seus votos religiosos. Um romance histórico de desenlace trágico, típico da literatura romântica, apesar da ressalva que o autor escreve nas notas finais, sobre a ausência de fontes históricas acerca da vida quotidiana dos visigodos.
O excerto escolhido pertence à descrição da batalha de Guadalete (Chryssus), mantendo a ortografia original da edição lida, de 1859.

Ao som, porém, das trombetas que annunciavam o renovar do combate, o cavalleiro negro não tardára a apparecer onde mais accesa andava a briga. Via-se, comtudo, que era principalmente nas fileiras dos arabes, onde as púas agudas e cortadoras da sua temerosa borda, ou maça d'armas, faziam maiores estragos. Mas quando algum dos godos transfugas ousava esperar-lhe os golpes, ou tentava ferí-lo, ouvia-se-lhe um rugido como o de maldicção preso na garganta por colera immensa, e o seu miseravel contrario não tardava a golfar o sangue na terra da patria que trahíra, e a entregar aos demonios a alma tisnada pela infamia da perfidia. Os arabes supersticiosos quasi criam ver nelle Eblis, o rei infernal do Gehenna, armado da espada percuciente, solto por Deus para os punir das offensas commettidas contra o divino koran. Diante delle recuavam os mais esforçados mosselemanos, e só de longe os frecheiros lhe disparavam alguns tiros, que se lhe empennavam no escudo, ou roçando por estes vinham bater-lhe na armadura, debaixo da qual manava já o sangue de algumas feridas, e os membros lassos começavam a desmentir a impetuosidade do espirito. 

Como na vespera, o sol inclinava-se das alturas do céu para o occaso, e ainda a batalha estava indecisa, se é que o terror que incutia o cavalleiro negro no logar onde pelejava, não fazia pender um pouco a balança do lado dos godos. De repente um grito agudo partiu do mais espesso revolver do combate; este grito gigante, indizivel, d'intima agonia, era o brado unisono de muitos homens; era o annuncio doloroso de um successo tremendo. O cavalleiro negro, que, impellido pela ebriedade do sangue, e semelhante a rochedo que se despenha pelo pendor da montanha, ia derramando a morte através dos esquadrões do Islam, volveu os olhos para o logar onde soára o bramido retumbante da multidão. Era no centro do exercito godo. As tiuphadias vergavam em semicirculos para a batida do Chryssus, como o açude minado pela torrente, a ponto de desprender-se das margens, oscilla e se curva bojando sobre a veia inferior das aguas. A muralha de ferro, que, posta entre o Islamismo e a Europa, dizia á religião do propheta d'Yatrib — não passarás d'aqui — vacilla como a quadrella de cidade fortificada batida muitos dias por vaivem d'inimigos. Por fim aquelles vastos massiços d'homens, ligados pela cadeia fortissima da disciplina, do pudor militar, e do esforço, derivam rotos ante os turbilhões dos arabes, ondeam, e derramam-se na campina. Pelo boqueirão enorme aberto no centro da hoste goda precipitam-se as ondas dos cavalleiros mohametanos, e após elles a turba dos bereberes com um bramido barbaro. Debalde as alas tentam ajunctar-se, travar-se uma com outra, soldar os membros despedaçados do leão iberico. Passa por lá a impetuosa corrente dos netos d'Agar, que envolve e arrasta os que pretendem vadea-la. Deus contára os dias do imperio de Leuwighild, e o sol do ultimo delles era o que descia já para o occidente!

2 de abril de 2024

S is for Space


Ray Bradbury
S is for Space (1966)

Muito do escrevi acerca de R is for Rocket aplica-se igualmente a S is for Space. E, pelo paralelismo dos títulos, não é de admirar a existência de edições que agregam os dois livros. S is for Space recolhe outros 16 contos, datados entre 1946 e 1962, narrativas insólitas tantas vezes de final aberto, onde a FC é, quando muito, uma pequena porção na temática fantástica da obra de Ray Bradbury, como bem sabem os seus leitores. Daí o título que o jornal Libération fez em 2012, num artigo dedicado ao escritor, após a sua morte: “Ray Bradbury, l'homme qui aimait la fiction, pas la science.” O trecho escolhido pertence a “Dark They Were, and Golden-Eyed”, publicado originalmente em 1949 sob o título “The Naming of Names”.

In the following days, Bittering wandered often through the garden to stand alone in his fear. As long as the rockets had spun a silver web across space, he had been able to accept Mars. For he had always told himself: Tomorrow, if I want, I can buy a ticket and go back to Earth.
But now: The web gone, the rockets lying in jigsaw heaps of molten girder and unsnaked wire. Earth people left to the strangeness of Mars, the cinnamon dusts and wine airs, to be baked like gingerbread shapes in Martian summers, put into harvested storage by Martian winters. What would happen to him, the others? This was the moment Mars had waited for. Now it would eat them.
He got down on his knees in the flower bed, a spade in his nervous hands. Work, he thought, work and forget.
He glanced up from the garden to the Martian mountains. He thought of the proud old Martian names that had once been on those peaks. Earthmen, dropping from the sky, had gazed upon hills, rivers, Martian seats left nameless in spite of names. Once Martians had built cities, named cities; climbed mountains, named mountains; sailed seas, named seas. Mountains melted, seas drained, cities tumbled. In spite of this, the Earthmen had felt a silent guilt at putting new names to these ancient hills and valleys.
Nevertheless, man lives by symbol and label. The names were given.
Mr. Bittering felt very alone in his garden under the Martian sun, anachronism bent here, planting Earth flowers in a wild soil.


Li anteriormente:
R is for Rocket (1962)
Crónicas Marcianas (1950)
O Homem Ilustrado (1951)