6 de abril de 2024

Eurico, o Presbítero


Alexandre Herculano
Eurico, o Presbítero (1844)

Eurico o Presbytero é uma narrativa que decorre no século VIII, entre os últimos dias da Hispânia visigótica, caída aos pés dos sarracenos, e o seu renascimento, onze anos depois, com Pelágio, em Covadonga. Eurico, a personagem principal, entrou no clero depois de um amor impossível, e transforma-se no cavaleiro negro após a invasão árabe, um combatente temerário nos campos de batalha; no final, volta a ser confrontado com o seu amor, separado agora pelos seus votos religiosos. Um romance histórico de desenlace trágico, típico da literatura romântica, apesar da ressalva que o autor escreve nas notas finais, sobre a ausência de fontes históricas acerca da vida quotidiana dos visigodos.
O excerto escolhido pertence à descrição da batalha de Guadalete (Chryssus), mantendo a ortografia original da edição lida, de 1859.

Ao som, porém, das trombetas que annunciavam o renovar do combate, o cavalleiro negro não tardára a apparecer onde mais accesa andava a briga. Via-se, comtudo, que era principalmente nas fileiras dos arabes, onde as púas agudas e cortadoras da sua temerosa borda, ou maça d'armas, faziam maiores estragos. Mas quando algum dos godos transfugas ousava esperar-lhe os golpes, ou tentava ferí-lo, ouvia-se-lhe um rugido como o de maldicção preso na garganta por colera immensa, e o seu miseravel contrario não tardava a golfar o sangue na terra da patria que trahíra, e a entregar aos demonios a alma tisnada pela infamia da perfidia. Os arabes supersticiosos quasi criam ver nelle Eblis, o rei infernal do Gehenna, armado da espada percuciente, solto por Deus para os punir das offensas commettidas contra o divino koran. Diante delle recuavam os mais esforçados mosselemanos, e só de longe os frecheiros lhe disparavam alguns tiros, que se lhe empennavam no escudo, ou roçando por estes vinham bater-lhe na armadura, debaixo da qual manava já o sangue de algumas feridas, e os membros lassos começavam a desmentir a impetuosidade do espirito. 

Como na vespera, o sol inclinava-se das alturas do céu para o occaso, e ainda a batalha estava indecisa, se é que o terror que incutia o cavalleiro negro no logar onde pelejava, não fazia pender um pouco a balança do lado dos godos. De repente um grito agudo partiu do mais espesso revolver do combate; este grito gigante, indizivel, d'intima agonia, era o brado unisono de muitos homens; era o annuncio doloroso de um successo tremendo. O cavalleiro negro, que, impellido pela ebriedade do sangue, e semelhante a rochedo que se despenha pelo pendor da montanha, ia derramando a morte através dos esquadrões do Islam, volveu os olhos para o logar onde soára o bramido retumbante da multidão. Era no centro do exercito godo. As tiuphadias vergavam em semicirculos para a batida do Chryssus, como o açude minado pela torrente, a ponto de desprender-se das margens, oscilla e se curva bojando sobre a veia inferior das aguas. A muralha de ferro, que, posta entre o Islamismo e a Europa, dizia á religião do propheta d'Yatrib — não passarás d'aqui — vacilla como a quadrella de cidade fortificada batida muitos dias por vaivem d'inimigos. Por fim aquelles vastos massiços d'homens, ligados pela cadeia fortissima da disciplina, do pudor militar, e do esforço, derivam rotos ante os turbilhões dos arabes, ondeam, e derramam-se na campina. Pelo boqueirão enorme aberto no centro da hoste goda precipitam-se as ondas dos cavalleiros mohametanos, e após elles a turba dos bereberes com um bramido barbaro. Debalde as alas tentam ajunctar-se, travar-se uma com outra, soldar os membros despedaçados do leão iberico. Passa por lá a impetuosa corrente dos netos d'Agar, que envolve e arrasta os que pretendem vadea-la. Deus contára os dias do imperio de Leuwighild, e o sol do ultimo delles era o que descia já para o occidente!

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