26 de decembro de 2022

O Esoterismo de Dante


René Guénon
O Esoterismo de Dante (1925)

Trata-se de uma análise assumidamente abreviada ao significado simbólico e numérico que estrutura a Divina Comédia, a obra maior do escritor medieval Dante Alighieri. É uma abordagem seguida por vários analistas da obra, ao longo do tempo, que foram interpretando e desvelando um sentido oculto, em perspectivas por vezes complementares, outras vezes contraditórias. A existência da possibilidade dessa leitura paralela é inegável, pois foi o próprio Dante quem a afirmou.

Assim, que a «Divina Comédia», no seu conjunto, se possa interpretar em diversos sentidos, é qualquer coisa que não oferece margem para dúvidas, visto que possuímos a esse respeito o próprio testemunho do seu autor, seguramente melhor qualificado do que qualquer outro para nos informar acerca das suas próprias intenções. A dificuldade começa apenas, quando se trata de determinar esses diferentes significados, sobretudo os mais elevados ou os mala profundos, e é também aí que começam, naturalmente, as divergências de pontos de vista entre os comentadores. Estes estão geralmente de acordo em reconhecer, sob o sentido literal do relato poético, um sentido filosófico, ou melhor, filosófico-teológico, e também um sentido político e social; mas esses, juntamente com o sentido literal, somam três e Dante adverte-nos para procurarmos quatro; qual é, então, o quarto sentido? Para nós, só pode ser um sentido propriamente iniciático, metafísico na sua essência, e ao qual se ligam múltiplos dados que, sem serem todos de ordem puramente metafísica, apresentam um carácter igualmente esotérico. É precisamente em virtude desse carácter que este sentido escapou completamente à maior parte dos comentadores: e, no entanto, se o ignorarmos ou se o desconhecermos, os outros sentidos só podem ser colhidos parcialmente, porque ele é como que o princípio deles, no qual se coordena e se unifica a sua multiplicidade.

Li anteriormente:
El Reino de la Cantidad y los Signos de los Tiempos (1945)
La Crisis del Mundo Moderno (1927)
El Rey del Mundo (1927)

26 de setembro de 2022

De Benguela às Terras de Iaca



Hermenegildo Capelo & Roberto Ivens
De Benguela às Terras de Iaca (1881)

De Benguella ás Terras de Iácca é o relato da primeira expedição de Capelo e Ivens em território angolano. Desde os preparativos em Luanda ao verdadeiro início em Benguela, de onde saíram a 12 de Novembro de 1877, rumando ao Bié pelo trilho do Sul via Caconda. Belmonte, no Bié, era um dos principais entrepostos comerciais onde chegavam as mercadorias dos sertões distantes, e por tal motivo, ponto de partida das expedições que exploraram e mapearam o interior desconhecido. O percurso seguiu para nordeste, para a bacia do Cuango. Nas cercanias de Cassange foram impedidos, pelos Bangalas, de passar para a margem direita do rio, pelo que a expedição seguiu para Oeste e para Norte, por Malange e Duque de Bragança, até voltar a encontrar a margem esquerda do Cuango, num território habitado pelos ma-iácca – ou seja, as terras de Iaca – que lhes afirmaram ser a primeira vez que homens brancos por lá apareciam. Na impossibilidade de prosseguir para Norte, por doença, falta de recursos e de guia, inverteram a marcha e regressaram a Duque de Bragança, por um trajecto a oeste do anteriormente utilizado. Na paragem neste local sofreram um incêndio no acampamento do qual resultaram perdas de vulto, em bens, instrumentos de medição e registos de viagem. A expedição seguiu depois para Ambaca e Pungo N’dongo, na margem do Cuanza, em territórios já bem conhecidos e cartografados, e, por fim, rumo a oeste até ao Dondo, onde deram por terminada a missão, a 21 de Setembro de 1879. Embarcaram a 11 de Outubro num vapor e, descendo o rio, chegaram a Luanda (uma cidade que contava então pouco mais de 13 mil habitantes, incluindo os subúrbios) no dia 13, 729 dias depois da saída dessa cidade.
As dificuldades apresentadas não são muito diferentes das já relatadas em livros que versam o mesmo tema: o clima, os insectos, as febres (“o menor dos sofrimentos”), o próprio escorbuto, e até, por vezes, a hostilidade dos nativos.

Preparavamo-nos para fazer uma serie de observações magneticas no interesse da sciencia (que tanto exige hoje do viajante), quando a chuva nos demoveu do proposito, deixando sem muita pena esse cuidado a futuros exploradores que por ali transitem e a quem desejamos melhor tempo.
Surprehendidos por uma medonha trovoada, seguida de chuva diluvial, conservámo-nos acampados, com grande satisfação dos nossos, que, em meio de uma nuvem de espesso fumo, enchendo completamente os fundos, passavam de bôca em bôca o cachimbo carregado de tabaco, muito abundante nas terras dos Bondos; substituindo-lhes pouco depois a mu-topa, em que se consome a fatal liamba (Cannabis sativa).
Os fumantes sentam-se em derredor de um amplo brazeiro, d’onde tiram com pequenas tenazes os carvões para começar a operação.
O primeiro que a conduz aos lábios, depois de ter quatro ou cinco vezes aspirado o precioso fumo, estendendo os beiços e chupando sôfrego, desata n’um vivo accesso de tosse, o qual parece tanto mais satisfactorio quanto mais proximo esteve da suffocação.
O cachimbo é logo entregue ao immediato, que continua o processo e fica estatelado, roncando de modo singular.
A agua dentro do chifre borbulha, deixando passar as bolhas de fumo, que produzem ruido especial.
Em breve um vacarme de urros nada permitte ouvir-se.
Os circumstantes, com a bôca cheia de saliva, que expellem a miudo, proseguem na faina, rindo, fallando, excitados pela acção perturbadora do canhamo.
Inspira na verdade dó ver similhante scena.
Mas como impedil-a, se para elles é isto um dos maiores deleites em que podem empregar o tempo?
Ao principio intentámol-o mas infructifero esforço, porque, fugindo para o mato, faziam-no clandestinamente!


Li anteriormente:
De Angola à Contracosta (1886)

14 de agosto de 2022

A Través del Islam


Ibn Batutta
A Través del Islam  (1356 / 2017)

O mapa das viagens de Ibn Batutta, por três continentes, é impressionante. Nascido em Tanger em 1304, a sua primeira viagem foi a Meca, cumprindo um dos preceitos do islamismo. No entanto não fez a viagem de regresso, e prosseguiu para o Médio Oriente, Ásia Menor, Costa Oriental Africana, Índia, Indonesia e China, regressando ao Magrebe ao final de 24 anos. Após esse curto descanso, foi ao reino do Al-Andalus na Península Ibérica e voltou a África, descendo a Timbuktu e dando uma larga volta por Agadez no regresso. No total, as suas viagens decorreram entre 1325 e 1354, tendo depois ditado de memória o registo conhecido como “Rihla” (nome genérico que na cultura árabe designa os relatos de viagens).
O seu relato era praticamente desconhecido no Ocidente até ao séc XIX, quando foi objecto de traduções em francês e inglês. Em 1929 o historiador inglês Hamilton Gibb publicou alguns excertos baseados em traduções anteriores, nomeadamente dos franceses Defrémery e Sanguinetti, mas já se tinha abalançado ao trabalho de fazer a sua própria tradução anotada. A obra teria 4 volumes, e o primeiro só seria publicado em 1958. Gibb morreu em 1971, com 3 volumes publicados (o quarto seria editado sob direcção de Charles Beckingham, em 1994).
A presente edição, com tradução de Serafín Fanjul e Federico Arbós, é a primeira em língua espanhola e assenta sobretudo no trabalho de Gibb, que se tornou um referência. A factualidade e a historicidade de muitas passagens do livro são colocadas em causa por alguns estudiosos, que também têm dúvidas se alguns dos relatos serão realmente experiências vividas pelo autor. Para o prazer da leitura isso é irrelevante (como o era nos relatos do seu contemporâneo Marco Polo).


El quemar a la esposa, tras la muerte del marido es, entre los hindúes, bien visto pero no forzoso. Si una viuda se incinera su familia gana fama y se les honra por su lealtad. Aquella que no se somete a las llamas se viste con ropas burdas y reside en casa de sus padres como signo de indignidad y bajeza por su incumplimiento, pero en ningún caso es obligada a quemarse.

Así, pues, cuando las tres mujeres que hemos mencionado consintieron en ser incineradas, pasaron tres días dedicadas a cantos, músicas, comidas y bebida como si se estuvieran despidiendo de este mundo. Otras mujeres venían a verlas de todos los rumbos. En la mañana del cuarto día trajeron a cada una un caballo sobre el que montaron engalanadas y perfumadas. En la diestra llevaban una nuez de coco con la que jugaban y con la izquierda sostenían un espejo en el que se contemplaban. Los brahmanes las rodeaban y también sus allegados. Delante iban atabales, albogues y añafiles. Los infieles les encargaban: «Transmitid mis saludos a mi padre, o a mi hermano, o a mi madre, o a mi amigo». A lo cual ellas decían sonriendo: «De acuerdo».

Monté a caballo con mis compañeros para ver su comportamiento durante la cremación. Anduvimos unas tres millas y llegamos a un lugar umbrío, muy arbolado y con agua, en una espesa fraga. Entre los árboles se alzaban cuatro templetes, en cada uno de los cuales había un ídolo de piedra. Entre las cúpulas había una alberca encima de la cual la sombra era tan densa y los árboles tan tupidos que el sol no podía penetrar entre ellos. Se diría que este lugar era el mismo infierno. ¡Que Dios nos guarde!

Al llegar ante aquellas cúpulas, las tres descabalgaron cerca del estanque, se zambulleron en él, se despojaron de las ropas y joyas que llevaban y las ofrecieron como limosna. Se les dio entonces una tela basta de algodón inconsútil con la que se cubrieron la cintura, la cabeza y los hombros. Mientras tanto se habían encendido las hogueras cerca del zafareche, en una depresión del terreno, y se había vertido sobre ellas aceite de kunŷud —es decir sésamo— que aviva las llamas. Unos quince hombres sostenían haces de leña y otros diez llevaban grandes tablones. Los músicos permanecían de pie esperando la llegada de las mujeres. El fuego estaba tapado con una manta que sujetaban los hombres para que su vista no las espantara. Vi cómo una de ellas en llegando a la manta la arrebató de manos de quienes la sujetaban y les dijo en persa, sonriendo: «¿Es que creéis que voy a asustarme con el fuego? Sé que es fuego ardiente». Después juntó las manos por encima de la cabeza, como reverenciando al fuego, y se arrojó en él. Momento en que resonaron los atabales, añafiles y albogues y los hombres echaron sobre ella la leña que sostenían en las manos. Otros le pusieron encima los tablones por que no se moviese. Las voces subieron y aumentó la barahúnda. Al verlo, casi caigo del caballo, de no ser por mis compañeros que trajeron agua con la que me rociaron la cara y pude recuperarme.

6 de abril de 2022

Pan

 

Knut Hamsun
Pan  (1894)

Pan é uma das primeiras novelas de Knut Hamsun e considerada entre as mais importantes do escritor norueguês. Nela se exalta a natureza, os animais (Esopo, o cão do tenente Glahn, é co-protagonista) e o amor.
O tenente Tomás Glahn, um caçador e antigo soldado, vive sozinho numa cabana, no bosque, com o seu cão. Um dia conhece Eduarda, a filha de um comerciante da povoação de Sirilund. Apesar da forte atracção mútua, nenhum deles compreende o amor do outro. Glahn acaba por se apaixonar por Eva, que imaginava ser a filha do ferreiro vindo a descobrir depois que era a sua mulher, enquanto Eduarda acaba por ceder a Mack, um barão finlandês de passagem por Sirilund. Devido a uma série de tragédias e pela pressão social, Glahn decide partir.
O desenlace final do livro é passado na Índia e narrado a partir da perspectiva de outra pessoa. Reencontramos Glahn acompanhado de outro caçador, que se apercebe das suas tormentas interiores sem conhecer as razões. Este epílogo intitula-se “A morte de Glahn”.

Conocí a un viejo lapón, ciego desde hacía cincuenta años, que a los setenta imaginábase poder ver un poquito mejor cada día. Los progresos resultaban lentos, lentísimos; pero de no interrumpirse —decía él—, «dentro de seis o siete años podré entrever el sol». Sus cabellos eran negros como los de un joven, y en cambio, sus ojos eran blancos; fumábamos muchas veces juntos, y me decía que de niño había visto perfectamente… Era fuerte, tenaz en la esperanza. Cuando me iba me acompañaba algún trecho, y deteniéndose de vez en cuando, me decía: «Allí está el Sur; allá el Norte; seguirás esa dirección unos trescientos pasos y luego torcerás a la derecha, ¿no es así?». «Así es», decíale yo, y él sonreía entonces satisfecho, asegurándome que la prueba de que veía mejor era que cincuenta años antes no me habría podido indicar la dirección tan exactamente. Luego casi a cuatro patas, se metía en su cabañuela y, sentado junto al fuego, dedicábase a acariciar el anhelo de recobrar la vista… Ya ves… La esperanza es cosa curiosa.