22 de abril de 2020

Wilt in Nowhere


Tom Sharpe
Wilt in Nowhere (2004)

Os primeiros três livros da série Wilt foram publicados em oito anos, mas tardou vinte anos a aparecer o volume seguinte, Wilt in Nowhere ou Wilt em Parte Incerta na tradução portuguesa.
Aparentemente, pouco tempo passou desde a última aventura de Wilt, pois reencontramos os nossos velhos conhecidos, o agora superintendente Hodge, o inspector Flint e o sargento Yates e a referência a factos passados em Wilt on High — até o tema é o mesmo, na metade que toca a Eva: a suspeição de tráfico de drogas.
O livro começa com o convite recebido dos tios americanos de Eva para que a família Wilt os visite, pagando eles todas as despesas — pois são um casal milionário, sem descendência. Enquanto Eva vê aqui uma oportunidade para lhes causar boa impressão, como potencial herdeira, Wilt só pensa em escapar ao compromisso, antevendo um aborrecimento sem fim. Assim, Eva e as quatro gémeas seguem para o Tennessee de avião, e Henry Wilt, com a desculpa do trabalho, e com recurso a algum dinheiro que tinha posto de lado em segredo, vai aproveitar a oportunidade para fazer uma viagem pedestre ao longo do rio Wye, na região rural de Hereford, nas Midlands inglesas.
Eva, por ter ficado sentada ao lado de um traficante de droga no avião, mete-se numa embrulhada gigantesca, arrastando consigo todos os que a rodeiam. Já Henry Wilt vai cair, sem saber como, no centro de uma maquinação familiar que envolve fogo-posto, pornografia e a morte de um político, passando uma boa parte do livro inconsciente. Tudo isto condimentado pelas situações mais caricatas e inesperadas, como é habitual nesta série.

Hodge nodded triumphantly. 'Add this to the catalogue,' he said. 'The day Mrs Wilt flies into Atlanta her husband goes to the building society and draws out a large sum in cash. In cash. And where does he leave his credit cards and passport? At home. On the kitchen table. That's right, on the kitchen table,' he said as Flint's face registered astonishment. 'Bed not made. Washing-up not done. Dirty plates still on the table. Drawers in the chest of drawers in the bedroom open. Car still in the garage. Nothing missing except Mr Henry Wilt. Not a bloody thing. Even his shoes are there. We got the cleaning lady to check them out. So what does that tell you?'
'It makes a change,' said Flint sourly. He disliked being wrong-footed, especially by clowns like Hodge.
'Makes a change? What's that supposed to mean?' Hodge demanded.
'It means just this. The first time I ran into Wilty, it was his wife was missing. Supposed to be down a damned great pile hole at the Tech. Only it just so happens Wilt has stuffed an inflatable plastic doll dressed in Mrs Eva bloody Wilt's clothes down there and they put twenty tons of pre-mix on top of her. In fact she is living it up with a couple of daffy Americans on a stolen boat on the Broads. So where is Mrs Wilt now? Sitting pretty...well, as near pretty as she'll ever get at any rate, in the United States and it's our Henry who is missing. Yes, that makes a change. It does indeed.'
'You don't think he's done a runner?' Hodge asked.
'With Wilt I've given up thinking. I have not the faintest idea what goes on in that mad blighter's mind. All I do know is it won't be what you think it is. It's going to be something you wouldn't even dream of thinking about. So don't ask me what he's done. I wouldn't have a clue.'
'Well, my guess is he's getting himself an alibi,' said Hodge.
'With his credit cards and all on the kitchen table?' said Flint. 'And none of his clothes missing? Doesn't sound much like a voluntary disappearance to me. Sounds more like something has happened to the little bastard. Have you checked the hospital?'
'Of course I have. The first thing I did. Checked every goddam hospital in the area. No one answering his description has been booked in. I've checked the morgues, the lot, and he is not around. Makes you think, doesn't it?'
'No,' said Flint firmly. 'It does not. I've told you. Where Henry Wilt is concerned I don't even try to think. It hurts too much.'

Li anteriormente:
Wilt on High (1984)
The Alternative Wilt (1979)
Wilt (1976)

17 de abril de 2020

La geografía secreta de América

Jacques de Mahieu
La geografía secreta de América (1978)

Nascido em Marselha em 1915, Jacques de Mahieu mudou-se para a Argentina por volta dos 30 anos e, naturalizado, viveu nesse país até ao final da vida. Foi um dos ideólogos do movimento peronista, mas o seu maior interesse residia na antropologia, área em que foi professor, apesar da sua formação em filosofia, medicina, ciências económicas e ciências políticas. Alguma da sua obra escrita tem por tema a América pré-colombiana, com títulos como Les templiers en Amérique, Drakkars sur l’Amazone ou El rey vikingo del Paraguay, onde defende teorias desenquadradas da História comummente aceite.
É o caso do presente livro, cujo título completo é La geografía secreta de América antes de Colón, e se debruça sobre o conhecimento geográfico prévio à época dos Descobrimentos. Há uma referência abundante a mapas antigos, com destaque para o mapa de Ptolomeu, do séc. II, que serviu de referência à cartografia até ao séc. XVI, ou ao mapa de Waldseemüller, de 1507, onde aparece desenhado pela primeira vez o continente americano com a designação actual. Referem-se os conhecimentos dos romanos na navegação do Índico até ao extremo Oriente, o estabelecimento de normandos e víquingues nas costas ocidentais do Atlântico Norte por volta dos sécs. X-XI, e uma série de outros feitos e viagens de exploração, aparentemente incongruentes com a linha histórica estabelecida, suficientemente documentados para se considerar reescrever algumas passagens dos livros de História. Interroga-se também sobre a pessoa de Cristóvão Colombo que, com um manto de sombra sobre o seu passado, foi igualmente alvo de outras especulações por outros autores.
A tese subjacente ao livro é que, no caso dos navegadores portugueses e espanhóis na época do Descobrimento da América, as suas viagens tinham um suporte teórico extremamente sólido, com recurso a uma infinidade de mapas de diferentes épocas e culturas, de rotas já usadas por víquingues e franceses mas mantidas em segredo (e também de exploração clandestina por conta própria) que lhes permitiu, desde o início da viagem, ter uma ideia bastante aproximada do que ia ser descoberto — ou redescoberto.

Entre las islas misteriosas del Atlántico que mencionamos en el capítulo II, hay una cuyo nombre habrá hecho sobresaltarse al lector no prevenido: aquella que el Portulano Medíceo llama, en 1351, Brazil; el mapa de Pizigano, en 1367, Braçir, con una cedilla superflua, para evitar la pronunciación italiana de la c; los de Blanco, en 1436, y de Fra Mauro, en 1457, Berzil; el de Benincasa, en 1482, Braçill. Pizigano la hace aparecer en el mismo mapa, en tres lugares distintos: al oeste y al sudoeste de las costas de Irlanda y al oeste del Cabo San Vicente, en el extremo sur de Portugal. Pareto, en 1455 nos la muestra dos veces, al oeste de Irlanda y a la altura del Cabo San Vicente. En uno de los mapas de su Atlas, Blanco la sitúa en el lugar exacto del actual Estado brasileño de Pernambuco. Se tenían, pues, en los siglos XIV y XV, datos contradictorios acerca de una tierra transoceánica que, según Pizigano, debía su nombre a los normandos.
Este nombre, en sí, se conocía en Europa desde el siglo IX. Los árabes, en efecto, importaban de la Insulindia y el Malabar extractos de una madera colorada, el bakkam (Caesalpinia Sapan y Pterocarpus Santalinus) que servía para teñir géneros. Este producto, los italianos lo llamaban bresill, brasilly, braxilis, verzino y, en latín, bresillum o verzinum. Los catalanes, que servían de intermediarios entre Italia y Castilla, decían brazil. Esos extractos llegaban a Europa, junto con las especias, en forma de pulpa, de laca y de polvo, lo que les daba un alto valor con un pequeño volumen. Los barcos árabes no estaban en condiciones de transportar troncos y no hubiera sido su interés hacerlo. Tal situación se transformó repentinamente, hacia mediados del siglo XIII, cuando empezaron a entrar en Francia, por los puertos de Normandía, rollos de brasil. No hay equivocación posible al respecto, puesto que, durante el reinado de San Luis, el Libro de los Oficios de Estienne Boileau reglamentaba su empleo por ebanistas y toneleros.
¿De dónde los normandos importaban esa madera? No del Asia, de seguro, pues ningún barco de Europa, en aquella época, navegaba en el Océano Indico. Para hacerlo, hubiera sido necesario dar la vuelta al Cabo de Buena Esperanza, y los dieppenses no iban, a lo largo de las costas africanas, más allá del río Zaire (Congo). Por lo tanto, habían encontrado una nueva fuente de abastecimiento. Ahora bien: fuera del Asia meridional, el brasil sólo existe en la América Central y el Amazonas: una variedad del sapang, la Caesalpinia brasiliensis. Por supuesto, marinos y comerciantes guardaban, según era costumbre, el secreto más riguroso respecto de la situación de las tierras descubiertas. Pero, lógicamente, no podían disimular su existencia: los productos que traían de ellas la hacía manifiesta. Se empezó, pues, a hablar de la isla —todas las tierras nuevas eran islas, ya lo dijimos— donde se procuraban el brasil. Y como no se sabía con exactitud donde se encontraba, se la situaba en los mapas en función de rumores contradictorios entre los cuales nada permitía elegir. Algunos cartógrafos llegaron así a aceptar la existencia de varias islas del mismo nombre. En Normandía y, en especial, en Dieppe, se sabía, por cierto, a qué atenerse. En 1503, cuando ya no era necesario —ni posible— guardar el secreto, el capitán Paulmier de Gonneville mencionaba, en un documento judicial entregado por él, después del naufragio de su barco, en la sede del Almirantazgo a instancia del Procurador del Rey, el “país de las Indias Occidentales adonde, desde hace unos años, los dieppenses y malonenses y otros normandos van a buscar madera de teñir en rojo”, ese país que los portugueses llamaban Terra Sanctae Crucis, pero que los franceses jamás designaban con otro nombre que el de Brésil.
Las tradiciones dieppenses han conservado el recuerdo de un viaje que el capitán Jean Cousin habría hecho, en 1488, a las bocas del Amazonas. Cuando se dirigía hacia el África, su barco habría sido desviado de su ruta, a la altura de las Azores, por una fuerte corriente marina —evidentemente la Corriente Norte-Ecuatorial— y llevado hacia el oeste hasta la desembocadura de un enorme río. Este relato no está documentado, pues un bombardeo inglés destruyó, en 1694, los archivos del Almirantazgo del puerto normando. Los detalles que nos proporciona, dejan, sin embargo, muy poca duda respecto de su realidad. No era éste, por lo demás, sino un viaje de rutina y el África constituía su camuflaje habitual. Si se habló de él, en la época del descubrimiento oficial de América; cuando el secreto ya no tenía mayor razón de ser, fue probablemente por un nombre que debió de llamar poderosamente la atención de los dieppenses. El segundo de Cousin, en efecto, era un castellano llamado Pinçón que intentó, durante el viaje, sublevar a la tripulación y fue destituido, a la vuelta, por el Consejo del Almirantazgo. ¿Tratábase de Martín Alonso Pinzón, capitán de La Pinta, a las órdenes de Colón, que insistió tanto, y con razón, como si conociera el camino, para que la flotilla singlara hacia el sudoeste, lo que obtuvo finalmente, no sin dar después una linda prueba de indisciplina? No podemos descartar esta hipótesis que, si fuera exacta, nos indicaría por qué Pinzón se fue a Roma. También nos explicaría por qué y cómo Vicente Yánez Pinzón, sobrino de Martín Alonso, armó de su hacienda, en 1499, una expedición a América y alcanzó justo el punto de la costa que, según todo parece demostrar, había tocado Cousin once años antes.

14 de abril de 2020

Perfil do Marquês de Pombal

Camilo Castelo Branco
Perfil do Marquês de Pombal (1882)

No ano em que se comemorou o centenário da morte do Marquês de Pombal, Camilo Castelo Branco publicou este livro ao arrepio da história oficial. Não para estragar a festa, que já tinha decorrido, mas para que os interessados pudessem conhecer a verdadeira face de Sebastião José de Carvalho e Melo, “neto do padre Sebastião da Mata Escura e da preta escrava Marta Fernandes”. E, assim, desfia um inventário, bem fundamentado e documentado, de actos despóticos, arbitrários, corruptos, incompetentes, toda a espécie de abusos, usurpações e vinganças mesquinhas com vista ao favorecimento pessoal ou pelo ódio que votava aos jesuítas, durante “vinte e sete anos de terror, de tristeza, de uma desconsolação profunda” em que o marquês, um arrivista com toda a máquina do Estado e da Inquisição subjugada ao seu dispor, aproveitando-se do carácter fraco do rei D. José I, reinou como um verdadeiro tirano — e desmonta ainda, uma a uma, as pretensas realizações do seu ministério.
No Proémio, Camilo Castelo Branco, insuspeito de clericalismo, ao constatar as alterações que o tempo provoca sobre a perspectiva dos eventos históricos, faz uma pergunta retórica inquietante: «Se os ultraliberais de 1882 estão com o Marquês de Pombal, quem nos afirma que as confederações republicanas e ateístas de 1982 não hão-de estar com os jesuítas?»
Talvez não “com os jesuítas” mas com “o jesuíta”... um desvio de 30 anos.
No texto abaixo fica a descrição de um dos últimos crimes do marquês, o incêndio da Trafaria, cometido quando o rei estava já no seu leito de morte.

Na praia da Trafaria, onde viviam cinco mil pessoas, campanhas remediadas de pescadores, muitas mulheres e criancinhas, havia um centenar de intrusos, caridosamente acolhidos pela tribo trabalhadora e boa dos homens do mar. Eram filhos do povo foragidos ao recrutamento.
A Espanha ameaçava-nos. O marquês dispunha de um mesquinho exército de 40.000 homens. O almirante de Castela surgira no Tejo com doze naus alterosas como outrora os galeões de Filipe II. Toda a marinha portuguesa era doze naus de linha e algumas fragatas. No entanto, o erário continha 75 milhões, amuados, estéreis, escondidos como um roubo; e o marquês era... o primeiro estadista que ainda viu Portugal. Fazia-se um recrutamento acelerado e violento. Os mancebos da indústria, dos ofícios e da lavoura acolhiam-se à Trafaria, ensaiando uma república, labutando na pesca. O marquês de Pombal tinha 78 anos e o coração de palmo e meio cada vez mais empedrado e cheio daqueles seixos que lhe encontrou o doutor Picanço. Em víscera tão cheia de cascalho já não cabia um sentimento generoso. Laceravam-no por dentro os arpões da vingança — queria cevar-se, remoçar-se no sangue daquela ralé que, ali, defronte de Lisboa, ousara insultar a sua autoridade, fugindo-lhe.
Cercá-los, manietá-los, chibatá-los na recruta, pô-los na dianteira do exército em batalha, com o peito às balas, pareceu-lhe desforço muito suave, impróprio dos seus precedentes. Resolveu queimá-los numa grande fogueira, que enroscasse cinco mil vítimas, mulheres, velhos, crianças, enfermos, com a serpente das suas labaredas. Na véspera do século XIX, só ao marquês de Pombal podia acudir o alvitre de abrasar uns rapazes que fugiam à desgraçada vida militar em Portugal.
Chamou Diogo Inácio de Pina Manique, intendente da polícia, deu-lhe uma ordem lacónica, e pôs à sua disposição 300 soldados e algumas dúzias de archotes.
A gente da Trafaria adormecera cansada da luta do dia com os escarcéus. A invernia fora grande. Manique, por alta hora da noite, atravessou o Tejo em faluas com os 300 soldados. Ao romper da aurora de 24 de Janeiro de 1777, a Trafaria estava cercada por um cordão de tropa. Da fileira saíram alguns soldados com archotes acesos. Eram de tabiques e colmaçadas as casas. A um tempo, rompeu o incêndio nas choupanas circunjacentes aos arruamentos interiores onde havia grandes depósitos de víveres em barracas de lona. O fogo cruzou em línguas rubras que a ventania serpejava de umas casas para o colmo das outras. Despertaram aquelas cinco mil vidas na sufocação da fumarada e no estralejar das madeiras.
Os desgraçados corriam nus por entre as chamas. Alguns levavam sobraçados os seus doentes, os seus velhos e as crianças. Desses, morreram bastantes que não puderam romper o assédio do fogo, além do qual estava o assédio da tropa. Muitos salvaram-se porque os soldados, compadecidos, transgredindo as ordens do Manique, abriram clareiras por onde escapassem. E os que se escapuliram levaram consigo a nudez e a fome, por que todos os seus haveres fumegavam nas cinzas do pavoroso incêndio.

Li anteriormente:
A Corja (1880)
Eusébio Macário (1879)
Amor de Perdição (1862)

12 de abril de 2020

De Angola à Contracosta

Hermenegildo Capelo & Roberto Ivens
De Angola à Contracosta (1886)

Já me referi anteriormente a Hermenegildo Brito Capelo e Roberto Ivens aquando da leitura do livro Como eu Atravessei África de Serpa Pinto. Capelo e Ivens acompanharam Serpa Pinto no início da expedição de 1877, separando-se dele no Bié, e dessa viagem deram conta no livro De Benguela às Terras de Iaca (1881). Este De Angola à Contracosta – Descrição de uma viagem através do Continente Africano, respeita à expedição seguinte, comandada pelos dois oficiais da marinha real, novamente patrocinada pela Sociedade Geográfica de Lisboa e pelo rei D. Luís.
As dificuldades da viagem não foram muito diferentes das descritas por Serpa Pinto no livro atrás referido, com algumas cambiantes: estes exploradores preveniram-se contra as febres e, atravessando normalmente zonas ricas em caça, não os afligiu demasiadamente a fome, pese embora a monotonia do cardápio; em compensação, atravessaram regiões infestadas pela mosca tsé-tsé que lhes dizimou o gado acompanhante, e tiveram de suportar tempestades quase diárias combinadas com uma temperatura e humidade elevadas nas regiões mais setentrionais que percorreram.
Após uma partida em falso em Porto Pinda, na costa angolana, frustrada pela fuga de 42 carregadores, o trajecto iniciou-se em Moçâmedes em 24 de Abril de 1884. Prosseguiu por Huíla (Sá da Bandeira), atravessou os rios Cunene, Cubango, Cuito, a confluência do Quembo com o Cuando e, a partir daqui, num percurso aproximado ao que Serpa Pinto trilhara quatro anos antes para atingir o Zambeze, pelos pântanos e lameiros entre o Lobale e o Barótze. A travessia deu-se na proximidade de Libonta, e a viagem continuou a par do Liambae (na verdade o Zambeze, no seu curso superior) e logo pelo Nordeste para transpor o Cabompo, afluente do Zambeze. Pouco depois determinaram a nascente do Lualaba (a origem do ramo médio do rio Zaire) e internaram-se na região do Garanganja (Katanga) com o objectivo de assentar em definitivo a posição aos seus numerosos afluentes. Em Bunqueia permaneceram duas semanas em recuperação e, partindo depois em busca do Luapula a 24 de Dezembro, deambularam perdidos pelas matas de Caponda, por incapacidade do guia, até 1 de Fevereiro, data em que finalmente encontraram a margem do dito rio. Nessa área permaneceram até ao final de Fevereiro, sem conseguir convencer o régulo local a abrir-lhes o caminho para o lago Bangueolo — uma repetição do que tinha sucedido em Bunqueia, quando pretendiam seguir para o lago Moero. Sem possibilidade de seguir para Norte ou Este, e com os recursos a caminho do esgotamento, a expedição cortou para Sul, rumo ao Zambeze, avistado finalmente no dia 25 de Abril, na proximidade de Chôa, após semanas de árduas marchas. Esta era já uma região colonizada por portugueses, e descreve-se o seu estabelecimento na Zambézia, desde Kabora-bassa até às margens do Cafué, considerando o Zambeze uma via fluvial comparável ao Zaire, mas numa geografia mais favorável e mais rica, que urgia consolidar. A partir daqui a conclusão da viagem estava assegurada; a expedição seguiu até Zumbo pela margem esquerda do rio, onde repousou, antes de abalar rio abaixo a 23 de Maio. Desembarcados em Caxomba, para evitar as cachoeiras de Kabora-bassa, o percurso atravessou uma região seca na margem direita, então palco de guerras e rebeliões, até chegar à vila de Tete, onde se podia dar por terminada a missão. Três dias depois voltaram a embarcar descendo o rio até Mazaro, onde fizeram transbordo, prosseguindo pelo Cuácua durante dois dias, até chegar por fim a Qelimane e à embocadura oceânica de onde avistaram o Índico, no dia 26 de Junho de 1885, após 4.500 milhas percorridas.
O livro inicia-se com uma breve resenha histórica da exploração portuguesa no interior do continente, um percorrer constante desde 1445, quando João Fernandes foi o primeiro europeu a fazer este tipo de expedições, em busca do lendário reino do Preste João, que se acreditava então poder situar-se em África. Contém depois um resumo do historial do reino do Congo, um vastíssimo território reconhecido como vassalo da coroa portuguesa já nos sécs. XVI e XVII; a insalubridade, letal para o europeu, impediu de fazer do rio Zaire o mesmo que no Amazonas, caso contrário teria nascido aqui um segundo Brasil. Donde se conclui que, contrariamente ao que a Conferência de Berlim (1884-85) predicou acerca da prevalência da «ocupação efectiva» sobre a «ocupação histórica» (um modo de as potências europeias, com o Reino Unido, a França e a Alemanha à cabeça, justificarem a partilha de África segundo os seus interesses), Portugal se viu de facto pilhado de um imenso território que tinha reconhecido ao longo de 440 anos. Incapaz de fazer valer o seu direito por manifesta falta de meios humanos e materiais, estas explorações de 1877 e 1881 são a tentativa final de salvar o que era possível, ajudando a delinear o «mapa cor-de-rosa», o território compreendido entre Angola e Moçambique, com a zona central que os ingleses viriam a colonizar nas duas Rodésias e na Niassalândia. Isto colidia uma vez mais com os interesses britânicos, determinados a unir o Cairo ao Cabo sem descontinuidades, e levou ao humilhante ultimatum de 1890 pelos nossos «velhos aliados» — uma aliança que, diga-se de passagem, descontando talvez 1385, só nos tem trazido prejuízos. Este acontecimento foi mais uma machadada no prestígio da monarquia; o hino nacional, A Portuguesa, nasceu por esses dias entre os republicanos, e nunca se deve esquecer que o último verso era, na verdade, Contra os bretões, marchar, marchar!

N'um logar chamado Quiúla deu-se com elle certo caso que nos deixou vexados aos olhos dos nossos, arreigando-se ainda uma vez em seu espirito a idéa de que os n'gangas possuem o segredo de poder adivinhar.
Eis o facto.
Quando proseguiamos por meio das planuras, passando proximos de plantações ou senzallas desertas de ba-nhengo, avisou-nos ao segundo dia o n'ganga, de que urgia tomar toda a cautela com os povoadores, porque, sendo pelo geral hostis, como quasi todos os ba-lobale, eram sobretudo e muito especialmente consummados ladrões!
Esta declaração na bôca de um preto do mato não nos mereceu grande confiança, pois o gentio, por andar sempre fugido, parecia extremamente timido, e pouco disposto a qualquer tentativa audaciosa.
Desprezando assim as suas indicações, alvitrámos-lhe um outro modo de ganhar a vida, pela improficuidade d'aquelle; recommendação que ouviu attento, e depois afastou-se para o mato, procedendo de cabaça na mão a outras adivinhações, ás quaes de longe assistiamos, quando por vezes nos davamos ao trabalho de observal-o.
Approximava-se o sol do horisonte, e tinhamos acabado de jantar, quando o nosso homem de novo se apresentou, encontrando-nos então em melhor disposição que de manhã.
Vinha satisfeito e com ar de quem decidíra questão importante, após as profundas locubrações a que se entregára.
Chamado o interprete Pedro, rapaz da nossa comitiva, acocoraram-se os dois, começando o n'ganga a fallar. A complicada oração prolongou-se por um bom quarto de hora.
—Então, que disse elle? inquirimos nós a Pedro, esperando alguma revelação estupenda.
—Por ora, respondeu este muito fleugmaticamente, ainda não disse nada!
Escusado será descrever aqui o nosso espanto perante similhante facto, que só julgavamos apanagio dos tribunos da velha Europa, e, silenciosos, esperámos se dignasse proferir alguma cousa.
Então?
Tornando a tomar a palavra, arengou longo tempo o quer que fosse. Pedro nos explicou ser uma especie de fabula, relativa a scenas passadas entre corpulento elephante que se não arreceára das ameaças de um grupo de bissonde (formigas guerreiras), as quaes, colhendo-o a dormir pela noite, se lhe enfiaram pela tromba, levando o animal no desespero a suicidar-se, batendo com ela pelas arvores.
Additou outra, concernente á entrada dos ratos pela noite nos celleiros, etc., que, por mal interpretada, ficámos sem comprehender o que elle desejava e se nos eram applicaveis similhantes narrativas, até que dispostos a deixar de escutal-o, íamos levantar a sessão, quando o mysterioso interlocutor se decidiu por fim a explicar-se.
Queria primeiro que tudo quatro jardas de fazenda, como pagamento do serviço que se propunha fazer-nos; logo depois de recebidas, declarou que acabava de adivinhar que dentro de limitadissimo espaço, quando muito de dois sóes, seriamos infallivelmente roubados pelos naturaes da terra onde estavamos.
Até aqui não offerece originalidade a historia, nem credito deviam valer as indicações do negro; o certo, porém, é que n'essa noite ás duas horas eramos effectivamente roubados, sendo para lamentar que elle n'ganga não tivesse aproveitado para si a parte que lhe cabia da revelação, pois foi tambem uma das victimas, perdendo o proprio machado!
Introduzindo-se de subito no acampamento, os ba-nhengo furtaram-nos uma arma, uma espada, os pannos de um homem e o machado; caso estupendo, e que jamais em nossa viagem se tornou a repetir, pois não ousam os indigenas penetrar nos acampamentos pela noite, ficando os nossos convencidos que nada ha como um n'ganga para adivinhar, sendo tambem certo não haver quem como elle fique tão tranquillo quando o expoliam!

5 de abril de 2020

Los Buddenbrook


Thomas Mann
Los Buddenbrook (1901)

Tendo em conta o subtítulo da obra, Decadência de uma família, desde as primeiras páginas de Os Buddenbrook, sabemos para onde se dirigirá a história. Prendem a atenção as descrições da opulência burguesa da casa, que por sua vez tinha sido comprada a um comerciante arruinado, porque sabemos que existe um destino marcado e aqueles sinais de riqueza serão um dia dissipados.
Com uma narrativa que atravessa 40 anos e quatro gerações de uma família de comerciantes da alta burguesia alemã, em pleno séc. XIX, o livro centra-se sobretudo em duas personagens, Thomas Buddenbrook e sua irmã Antonie (ou Tony), com temperamentos muito diferentes, que têm uma forte noção do peso do nome familiar e tentam, de forma voluntariosa mas sem grandes resultados práticos, transmitir e melhorar o legado às gerações futuras. Assim, quase sempre por manifesta infelicidade, Thomas Buddenbrook não só não conseguirá conservar o grosso do seu património como, à aproximação do final da vida, tem a percepção que o filho, doente e sem outro interesse para além da música, será incapaz de dar continuidade à firma.
Los Buddenbrook, nesta edição em espanhol com tradução de Isabel García Adánez, foi o primeiro romance de grande fôlego do escritor, editado quando ele tinha 25 anos; Thomas Mann parece-me um autor mais interessante nas obras extensas (A Montanha Mágica, Doutor Fausto) do que nas novelas curtas e este livro confirma a minha opinião.

Cuando llegaron al «templo del mar» ya comenzaba a caer la tarde; el otoño estaba bastante avanzado. Permanecieron de pie en una de las habitaciones que se abrían a la bahía, en las que olía a madera, igual que en las casetas de la casa de baños, y cuyas toscas paredes estaban llenas de inscripciones, iniciales, corazones y versos. Uno junto al otro, contemplaron la pendiente cubierta de musgo verde que bajaba hasta la playa y la estrecha y pedregosa franja de arena que se extendía a lo largo del mar, revuelto y turbio.
—¡Qué olas tan grandes...! —dijo Thomas Buddenbrook—. ¡Cómo vienen y rompen, vienen y rompen, una tras otra, sin fin, sin sentido, tristes y erráticas! Y, sin embargo, nos tranquilizan y nos consuelan como sólo lo hace lo más sencillo y necesario. He llegado a amar el mar cada vez más... Quizás en otra época me atrajeran más las montañas, porque estaban lejos de aquí. Ahora ya no querría ir por nada del mundo. Creo que sentiría miedo y vergüenza. Allí es todo demasiado azaroso, demasiado irregular, demasiado diverso...; sin duda, me sentiría demasiado inferior. ¿Qué tipo de personas son las que prefieren la monotonía del mar? Yo creo que son las que han pasado mucho tiempo observando su laberinto interior con demasiada profundidad, de modo que lo único que buscan, al menos en el exterior que les rodea, es una cosa: uniformidad... Hay una primera diferencia, menor: en las montañas, uno va trepando y subiendo, mientras que, junto al mar, uno permanece quieto, descansando en la arena. Sin embargo, conozco la mirada con la que se rinden honores a lo uno y a lo otro. Los ojos que vuelan de cumbre en cumbre son ojos seguros, rebeldes, felices, llenos de ganas de vivir, de firmeza y valor para enfrentarse a lo que se ponga por delante; en cambio, ante la inmensidad del mar que mece sus olas con este fatalismo místico e hipnótico, hay una mirada nublada, consciente y sin esperanza que alguna vez vislumbró las profundidades del triste caos de la existencia... Salud o enfermedad: ahí está la diferencia importante. Uno escala con arrojo la maravillosa diversidad de aquellos parajes llenos de aristas, cumbres y precipicios para poner a prueba su fuerza vital cuando todavía no se ha consumido nada de ella. Pero prefiere descansar en la infinita uniformidad del mundo exterior cuando está cansado de la absurda maraña del interior.
La señora Permaneder, intimidada e incómodamente conmovida, guardó silencio; calló como calla la gente sencilla cuando, en medio de una conversación de sociedad, alguien dice muy serio una gran verdad. «¡Esas cosas no se dicen!», pensó, mirando con firmeza hacia la lejanía del horizonte para no encontrarse con los ojos de su hermano. Y, como si le pidiera disculpas por no poder evitar avergonzarse de él en aquel silencio, le cogió un brazo para rodearlo con los suyos.

Li anteriormente:
O Cisne Negro (1954)
Tônio Kroeger (1903)
A Morte em Veneza (1912)