14 de abril de 2020

Perfil do Marquês de Pombal

Camilo Castelo Branco
Perfil do Marquês de Pombal (1882)

No ano em que se comemorou o centenário da morte do Marquês de Pombal, Camilo Castelo Branco publicou este livro ao arrepio da história oficial. Não para estragar a festa, que já tinha decorrido, mas para que os interessados pudessem conhecer a verdadeira face de Sebastião José de Carvalho e Melo, “neto do padre Sebastião da Mata Escura e da preta escrava Marta Fernandes”. E, assim, desfia um inventário, bem fundamentado e documentado, de actos despóticos, arbitrários, corruptos, incompetentes, toda a espécie de abusos, usurpações e vinganças mesquinhas com vista ao favorecimento pessoal ou pelo ódio que votava aos jesuítas, durante “vinte e sete anos de terror, de tristeza, de uma desconsolação profunda” em que o marquês, um arrivista com toda a máquina do Estado e da Inquisição subjugada ao seu dispor, aproveitando-se do carácter fraco do rei D. José I, reinou como um verdadeiro tirano — e desmonta ainda, uma a uma, as pretensas realizações do seu ministério.
No Proémio, Camilo Castelo Branco, insuspeito de clericalismo, ao constatar as alterações que o tempo provoca sobre a perspectiva dos eventos históricos, faz uma pergunta retórica inquietante: «Se os ultraliberais de 1882 estão com o Marquês de Pombal, quem nos afirma que as confederações republicanas e ateístas de 1982 não hão-de estar com os jesuítas?»
Talvez não “com os jesuítas” mas com “o jesuíta”... um desvio de 30 anos.
No texto abaixo fica a descrição de um dos últimos crimes do marquês, o incêndio da Trafaria, cometido quando o rei estava já no seu leito de morte.

Na praia da Trafaria, onde viviam cinco mil pessoas, campanhas remediadas de pescadores, muitas mulheres e criancinhas, havia um centenar de intrusos, caridosamente acolhidos pela tribo trabalhadora e boa dos homens do mar. Eram filhos do povo foragidos ao recrutamento.
A Espanha ameaçava-nos. O marquês dispunha de um mesquinho exército de 40.000 homens. O almirante de Castela surgira no Tejo com doze naus alterosas como outrora os galeões de Filipe II. Toda a marinha portuguesa era doze naus de linha e algumas fragatas. No entanto, o erário continha 75 milhões, amuados, estéreis, escondidos como um roubo; e o marquês era... o primeiro estadista que ainda viu Portugal. Fazia-se um recrutamento acelerado e violento. Os mancebos da indústria, dos ofícios e da lavoura acolhiam-se à Trafaria, ensaiando uma república, labutando na pesca. O marquês de Pombal tinha 78 anos e o coração de palmo e meio cada vez mais empedrado e cheio daqueles seixos que lhe encontrou o doutor Picanço. Em víscera tão cheia de cascalho já não cabia um sentimento generoso. Laceravam-no por dentro os arpões da vingança — queria cevar-se, remoçar-se no sangue daquela ralé que, ali, defronte de Lisboa, ousara insultar a sua autoridade, fugindo-lhe.
Cercá-los, manietá-los, chibatá-los na recruta, pô-los na dianteira do exército em batalha, com o peito às balas, pareceu-lhe desforço muito suave, impróprio dos seus precedentes. Resolveu queimá-los numa grande fogueira, que enroscasse cinco mil vítimas, mulheres, velhos, crianças, enfermos, com a serpente das suas labaredas. Na véspera do século XIX, só ao marquês de Pombal podia acudir o alvitre de abrasar uns rapazes que fugiam à desgraçada vida militar em Portugal.
Chamou Diogo Inácio de Pina Manique, intendente da polícia, deu-lhe uma ordem lacónica, e pôs à sua disposição 300 soldados e algumas dúzias de archotes.
A gente da Trafaria adormecera cansada da luta do dia com os escarcéus. A invernia fora grande. Manique, por alta hora da noite, atravessou o Tejo em faluas com os 300 soldados. Ao romper da aurora de 24 de Janeiro de 1777, a Trafaria estava cercada por um cordão de tropa. Da fileira saíram alguns soldados com archotes acesos. Eram de tabiques e colmaçadas as casas. A um tempo, rompeu o incêndio nas choupanas circunjacentes aos arruamentos interiores onde havia grandes depósitos de víveres em barracas de lona. O fogo cruzou em línguas rubras que a ventania serpejava de umas casas para o colmo das outras. Despertaram aquelas cinco mil vidas na sufocação da fumarada e no estralejar das madeiras.
Os desgraçados corriam nus por entre as chamas. Alguns levavam sobraçados os seus doentes, os seus velhos e as crianças. Desses, morreram bastantes que não puderam romper o assédio do fogo, além do qual estava o assédio da tropa. Muitos salvaram-se porque os soldados, compadecidos, transgredindo as ordens do Manique, abriram clareiras por onde escapassem. E os que se escapuliram levaram consigo a nudez e a fome, por que todos os seus haveres fumegavam nas cinzas do pavoroso incêndio.

Li anteriormente:
A Corja (1880)
Eusébio Macário (1879)
Amor de Perdição (1862)

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