12 de abril de 2020

De Angola à Contracosta

Hermenegildo Capelo & Roberto Ivens
De Angola à Contracosta (1886)

Já me referi anteriormente a Hermenegildo Brito Capelo e Roberto Ivens aquando da leitura do livro Como eu Atravessei África de Serpa Pinto. Capelo e Ivens acompanharam Serpa Pinto no início da expedição de 1877, separando-se dele no Bié, e dessa viagem deram conta no livro De Benguela às Terras de Iaca (1881). Este De Angola à Contracosta – Descrição de uma viagem através do Continente Africano, respeita à expedição seguinte, comandada pelos dois oficiais da marinha real, novamente patrocinada pela Sociedade Geográfica de Lisboa e pelo rei D. Luís.
As dificuldades da viagem não foram muito diferentes das descritas por Serpa Pinto no livro atrás referido, com algumas cambiantes: estes exploradores preveniram-se contra as febres e, atravessando normalmente zonas ricas em caça, não os afligiu demasiadamente a fome, pese embora a monotonia do cardápio; em compensação, atravessaram regiões infestadas pela mosca tsé-tsé que lhes dizimou o gado acompanhante, e tiveram de suportar tempestades quase diárias combinadas com uma temperatura e humidade elevadas nas regiões mais setentrionais que percorreram.
Após uma partida em falso em Porto Pinda, na costa angolana, frustrada pela fuga de 42 carregadores, o trajecto iniciou-se em Moçâmedes em 24 de Abril de 1884. Prosseguiu por Huíla (Sá da Bandeira), atravessou os rios Cunene, Cubango, Cuito, a confluência do Quembo com o Cuando e, a partir daqui, num percurso aproximado ao que Serpa Pinto trilhara quatro anos antes para atingir o Zambeze, pelos pântanos e lameiros entre o Lobale e o Barótze. A travessia deu-se na proximidade de Libonta, e a viagem continuou a par do Liambae (na verdade o Zambeze, no seu curso superior) e logo pelo Nordeste para transpor o Cabompo, afluente do Zambeze. Pouco depois determinaram a nascente do Lualaba (a origem do ramo médio do rio Zaire) e internaram-se na região do Garanganja (Katanga) com o objectivo de assentar em definitivo a posição aos seus numerosos afluentes. Em Bunqueia permaneceram duas semanas em recuperação e, partindo depois em busca do Luapula a 24 de Dezembro, deambularam perdidos pelas matas de Caponda, por incapacidade do guia, até 1 de Fevereiro, data em que finalmente encontraram a margem do dito rio. Nessa área permaneceram até ao final de Fevereiro, sem conseguir convencer o régulo local a abrir-lhes o caminho para o lago Bangueolo — uma repetição do que tinha sucedido em Bunqueia, quando pretendiam seguir para o lago Moero. Sem possibilidade de seguir para Norte ou Este, e com os recursos a caminho do esgotamento, a expedição cortou para Sul, rumo ao Zambeze, avistado finalmente no dia 25 de Abril, na proximidade de Chôa, após semanas de árduas marchas. Esta era já uma região colonizada por portugueses, e descreve-se o seu estabelecimento na Zambézia, desde Kabora-bassa até às margens do Cafué, considerando o Zambeze uma via fluvial comparável ao Zaire, mas numa geografia mais favorável e mais rica, que urgia consolidar. A partir daqui a conclusão da viagem estava assegurada; a expedição seguiu até Zumbo pela margem esquerda do rio, onde repousou, antes de abalar rio abaixo a 23 de Maio. Desembarcados em Caxomba, para evitar as cachoeiras de Kabora-bassa, o percurso atravessou uma região seca na margem direita, então palco de guerras e rebeliões, até chegar à vila de Tete, onde se podia dar por terminada a missão. Três dias depois voltaram a embarcar descendo o rio até Mazaro, onde fizeram transbordo, prosseguindo pelo Cuácua durante dois dias, até chegar por fim a Qelimane e à embocadura oceânica de onde avistaram o Índico, no dia 26 de Junho de 1885, após 4.500 milhas percorridas.
O livro inicia-se com uma breve resenha histórica da exploração portuguesa no interior do continente, um percorrer constante desde 1445, quando João Fernandes foi o primeiro europeu a fazer este tipo de expedições, em busca do lendário reino do Preste João, que se acreditava então poder situar-se em África. Contém depois um resumo do historial do reino do Congo, um vastíssimo território reconhecido como vassalo da coroa portuguesa já nos sécs. XVI e XVII; a insalubridade, letal para o europeu, impediu de fazer do rio Zaire o mesmo que no Amazonas, caso contrário teria nascido aqui um segundo Brasil. Donde se conclui que, contrariamente ao que a Conferência de Berlim (1884-85) predicou acerca da prevalência da «ocupação efectiva» sobre a «ocupação histórica» (um modo de as potências europeias, com o Reino Unido, a França e a Alemanha à cabeça, justificarem a partilha de África segundo os seus interesses), Portugal se viu de facto pilhado de um imenso território que tinha reconhecido ao longo de 440 anos. Incapaz de fazer valer o seu direito por manifesta falta de meios humanos e materiais, estas explorações de 1877 e 1881 são a tentativa final de salvar o que era possível, ajudando a delinear o «mapa cor-de-rosa», o território compreendido entre Angola e Moçambique, com a zona central que os ingleses viriam a colonizar nas duas Rodésias e na Niassalândia. Isto colidia uma vez mais com os interesses britânicos, determinados a unir o Cairo ao Cabo sem descontinuidades, e levou ao humilhante ultimatum de 1890 pelos nossos «velhos aliados» — uma aliança que, diga-se de passagem, descontando talvez 1385, só nos tem trazido prejuízos. Este acontecimento foi mais uma machadada no prestígio da monarquia; o hino nacional, A Portuguesa, nasceu por esses dias entre os republicanos, e nunca se deve esquecer que o último verso era, na verdade, Contra os bretões, marchar, marchar!

N'um logar chamado Quiúla deu-se com elle certo caso que nos deixou vexados aos olhos dos nossos, arreigando-se ainda uma vez em seu espirito a idéa de que os n'gangas possuem o segredo de poder adivinhar.
Eis o facto.
Quando proseguiamos por meio das planuras, passando proximos de plantações ou senzallas desertas de ba-nhengo, avisou-nos ao segundo dia o n'ganga, de que urgia tomar toda a cautela com os povoadores, porque, sendo pelo geral hostis, como quasi todos os ba-lobale, eram sobretudo e muito especialmente consummados ladrões!
Esta declaração na bôca de um preto do mato não nos mereceu grande confiança, pois o gentio, por andar sempre fugido, parecia extremamente timido, e pouco disposto a qualquer tentativa audaciosa.
Desprezando assim as suas indicações, alvitrámos-lhe um outro modo de ganhar a vida, pela improficuidade d'aquelle; recommendação que ouviu attento, e depois afastou-se para o mato, procedendo de cabaça na mão a outras adivinhações, ás quaes de longe assistiamos, quando por vezes nos davamos ao trabalho de observal-o.
Approximava-se o sol do horisonte, e tinhamos acabado de jantar, quando o nosso homem de novo se apresentou, encontrando-nos então em melhor disposição que de manhã.
Vinha satisfeito e com ar de quem decidíra questão importante, após as profundas locubrações a que se entregára.
Chamado o interprete Pedro, rapaz da nossa comitiva, acocoraram-se os dois, começando o n'ganga a fallar. A complicada oração prolongou-se por um bom quarto de hora.
—Então, que disse elle? inquirimos nós a Pedro, esperando alguma revelação estupenda.
—Por ora, respondeu este muito fleugmaticamente, ainda não disse nada!
Escusado será descrever aqui o nosso espanto perante similhante facto, que só julgavamos apanagio dos tribunos da velha Europa, e, silenciosos, esperámos se dignasse proferir alguma cousa.
Então?
Tornando a tomar a palavra, arengou longo tempo o quer que fosse. Pedro nos explicou ser uma especie de fabula, relativa a scenas passadas entre corpulento elephante que se não arreceára das ameaças de um grupo de bissonde (formigas guerreiras), as quaes, colhendo-o a dormir pela noite, se lhe enfiaram pela tromba, levando o animal no desespero a suicidar-se, batendo com ela pelas arvores.
Additou outra, concernente á entrada dos ratos pela noite nos celleiros, etc., que, por mal interpretada, ficámos sem comprehender o que elle desejava e se nos eram applicaveis similhantes narrativas, até que dispostos a deixar de escutal-o, íamos levantar a sessão, quando o mysterioso interlocutor se decidiu por fim a explicar-se.
Queria primeiro que tudo quatro jardas de fazenda, como pagamento do serviço que se propunha fazer-nos; logo depois de recebidas, declarou que acabava de adivinhar que dentro de limitadissimo espaço, quando muito de dois sóes, seriamos infallivelmente roubados pelos naturaes da terra onde estavamos.
Até aqui não offerece originalidade a historia, nem credito deviam valer as indicações do negro; o certo, porém, é que n'essa noite ás duas horas eramos effectivamente roubados, sendo para lamentar que elle n'ganga não tivesse aproveitado para si a parte que lhe cabia da revelação, pois foi tambem uma das victimas, perdendo o proprio machado!
Introduzindo-se de subito no acampamento, os ba-nhengo furtaram-nos uma arma, uma espada, os pannos de um homem e o machado; caso estupendo, e que jamais em nossa viagem se tornou a repetir, pois não ousam os indigenas penetrar nos acampamentos pela noite, ficando os nossos convencidos que nada ha como um n'ganga para adivinhar, sendo tambem certo não haver quem como elle fique tão tranquillo quando o expoliam!

Ningún comentario:

Publicar un comentario