25 de outubro de 2020

Viaje a la Alcarria

 

Camilo José Cela
Viaje a la Alcarria (1948)

Não sendo um livro escrito na primeira pessoa, Camilo José Cela percorreu na realidade a região de Alcarria, nas proximidades de Guadalajara, de bloco na mão, em Junho de 1946, tirando apontamentos que deram origem a Viaje a la Alcarria. No prólogo, considera-o como o livro mais simples, mais imediato e directo da sua autoria, apesar das diferentes versões que foram publicadas antes de o fixar na sua forma final.
Acompanhando os passos de um madrileno não identificado, referido apenas como “o viajante”, Viaje a la Alcarria é um livro de esboços rápidos de lugares e personagens, de cenas fugazes que o protagonista vai vivendo ao longo de alguns dias, encontros e reencontros com outros viajantes que, por diferentes motivos, seguem um percurso similar.

El autobús va hasta los topes y al viajero le hacen un hueco en la última Ría de asientos, entre unos gitanos. En la Alcarria, el viajero se encontró gitanos por todas partes, gitanos que viven en paz y buena armonía con los payos, gitanos trabajadores y buenos artesanos —chumajarós que ponen bien la suela de los zapatos, petalarós que cantan martinetes en la fragua, cascaroberós que fabrican los más relucientes calderos, bajirinanós que construyen livianas y resistentes cestas—, gitanos sedentarios que se inscriben en el registro civil, van a las quintas y viajan en coche de línea, gitanos que lo único que no hacen es casarse fuera de su raza.
El viajero, al intentar acomodarse, pisa sin querer a una gitana jovencilla, muy guapa. La mujer da un grito.
—¡Mal puñetaso te pegue un inglés borracho, esaborío!
Cuando el autobús echa a andar, la gente se va acoplando. El acoplamiento es, a veces, doloroso.
—¡Que me aplasta usted a la criatura!
El hombre, haciendo equilibrios, responde sin mirar; aunque quisiera, no podría volver la cabeza.
—Échela usted en la baca, señora, y cállese.
—Tendremos que esperar a agosto, que por ahora lo llevo dentro.
No más salir del pueblo, unas criadas empiezan a alborotar: ya irán así todo el camino. Antes de llegar al Tajo, una señora gorda dice perdone, y les vomita por encima a un guardia civil, a su señora y a un niño de pecho que llevaba al brazo. El niño iba dormidito, pero, como es natural, se despierta y empieza a gritar; el niño grita como si lo estuvieran matando; la cosa, como dice muy bien un joven de corbata de lazo y flexible verde claro, no era para tanto.


Li anteriormente:
La Colmena (1951)
A Família de Pascoal Duarte (1
942)


11 de xullo de 2020

Encubrimiento y usurpación de América



Luis E. Ninamango Jurado
Encubrimiento y usurpación de América (2009)

Uma edição patrocinada pelo Ministério do Poder Popular do Gabinete da Presidência, na República Bolivariana da Venezuela, à data liderada por Hugo Chávez, é o suficiente para deixar qualquer um de pé atrás. Este primeiro livro publicado pelo historiador peruano Luis Erasmo Ninamango Jurado, disponível no archive.org, é, sem dúvida um exercício de história revisionista, pontuado aqui e ali por frases tronantes que o autor não se preocupa demasiadamente em fundamentar.
Uma das principais peças de argumentação é o mapamundi de Juan de la Cosa, desenhado pelo navegador espanhol em 1500, que representa com algum rigor a costa africana e a do sudoeste asiático; também estão já assinaladas as ilhas das Caraíbas, bem como a costa oriental do continente americano, com uma aproximação surpreendente na zona compreendida entre a costa da Colômbia e as Guianas. Este mapa, depositado no Museu Naval de Espanha, em Madrid, já havia despertado a atenção de Alexander von Humboldt em 1832, pela sua peculiaridade. Luis Ninamango conclui que Juan de la Cosa terá, no mínimo, copiado o mapa de outro documento mais antigo, originário do Oriente (os desenhos que o ilustram têm, sem dúvida, uma expressão oriental), tanto mais que, em 1500, Colombo fazia a sua terceira viagem à América e ainda não se tinha apercebido que as suas descobertas se situavam exclusivamente de território insular. O mesmo não acontecia com Juan de la Cosa, acompanhante de Colombo nas duas primeiras viagens ao Novo Mundo que, por esta altura, com Américo Vespúcio e Alonso de Ojeda, era um dos responsáveis pelo reconhecimento das costas da Colômbia, Venezuela e Guiana, e parte das Antilhas. Vespúcio, segundo o autor, terá mesmo descido pela costa do Brasil até, pelo menos, Pernambuco.
Depois, a forma como Portugal e Espanha acordaram as suas zonas de influência, sob o patrocínio do Vaticano, primeiro no Tratado de Alcáçovas (1479) e depois no Tratado de Tordesilhas (1494) provará que portugueses e castelhanos tinham já nessas datas uma ideia muito aproximada do que havia a “descobrir”, mormente quando o meridiano de Tordesilhas é deslocado 470 léguas para Ocidente, para permitir a inclusão de parte do Brasil no hemisfério português.
As teorias especulativas de Luis Ninamango afirmam em consequência que a Europa Medieval e Renascentista se apropriou do conhecimento oriental da navegação, ocultando a sua origem e utilizando-o em proveito próprio. Afirmam também que Portugal, tendo expulsado os mouros do seu território quase 250 anos antes de Espanha ter feito o mesmo, aproveitou esta vantagem para se antecipar nas suas incursões a África e à América, aproveitando mapas, rotas comerciais, minas, etc. que pertenciam aos árabes; por fim fala da devastação causada nas milenárias culturas americanas. Desta suposta destruição, encobrimento e usurpação de valores culturais alheios sem reconhecer a sua autoria, considera-o o pior delito de lesa-cultura perpetrado na história da humanidade.
Se algumas destas premissas têm alguma plausibilidade — recorde-se, por exemplo que a China tinha, nos séculos XIV e inícios de XV, meios técnicos de navegação superiores aos europeus, e estava em plena expansão no Índico quando os imperadores Ming decidiram acabar com a frota e fechar o império ao exterior —, parece no entanto pouco provável que portugueses e castelhanos tenham explorado secretamente o Atlântico durante tanto tempo (oito décadas antes dos Descobrimentos “oficiais”, como o autor sugere), muito menos que se tenham aproveitado de rotas árabes pré-existentes e que tenham encontrado (e combatido) os mouros estabelecidos no continente americano. Quanto à “devastação”, tema que não é sequer aprofundado neste livro, é mais uma variação da Lenda Negra, que persegue sobretudo os espanhóis desde o Descobrimento, com pouca fundamentação histórica e muita manipulação dos factos pelos seus inimigos tradicionais — ingleses, holandeses e franceses — para desviar a atenção dos seus próprios actos. A forma como os reinos ibéricos e o papado forjaram esta “partilha do mundo”, é alvo de particular animosidade pelo autor, que assenta a sua crítica sobretudo em Fernando II de Aragão, “el rey truhán”, e em Alexandre VI, o “papa-súbdito-aragonês”, como constantemente nos recorda, para no fim jogar a inevitável cartada indigenista e culpabilizar os europeus por tudo quanto de mal se passa actualmente na América hispânica — como se esses países não fossem independentes e responsáveis pelos seus destinos há 200 anos. Propõe ainda que Espanha, Portugal, Itália e o Vaticano reescrevam a História à luz dos novos preconceitos, num exercício de auto-flagelação que os leve a renegar o seu passado.

Dada esta situación, los monarcas envían a continuación, primero al capitán Rodrigo de Bastidas, apoyado por Juan de la Cosa, a recorrer las costas más occidentales de Venezuela y a “descubrir” las de Colombia desde el Cabo de la Vela en la península de la Guajira hasta el golfo de Urabá en la frontera con Panamá; y seguidamente después de la partida de Bastidas (octubre de 1500), por la misma ruta, a Alonso de Ojeda con Américo Vespucio. Con el último tramo mencionado, Vespucio completó su reconocimiento de las costas suramericanas desde el Cabo de San Agustín o de Santa María de la Consolación (8° de latitud Sur), Pernambuco, Brasil, hasta el golfo de Urabá en la frontera oriental de Panamá. Recordemos que en su polémico primer viaje el florentino recorrió casi toda la costa caribeña de Centroamérica y parte de las de Norteamérica.
Así las cosas, “inesperadamente”, Américo Vespucio había sido “llamado” por el rey Manuel I de Portugal (el Afortunado, en ese entonces yerno de los Reyes Católicos por segunda vez) para ayudar a “descubrir” en las costas suramericanas orientales del Atlántico Sur. Este viaje fue narrado por Vespucio en una carta que le dirigió a Lorenzo di Pier Francesco de Medici en mayo de 1503, publicada en París en 1503 o 1504, con el título Mundus Novus; y en otra dirigida a Piero Soderini el 4 de septiembre de 1504, que presenta discrepancias con la escrita el año anterior.
Parte de Lisboa el 10 de mayo de 1501 en una expedición de tres carabelas. Entre mayo y junio ocurre un conveniente encuentro con Pedro Álvares Cabral en Cabo Verde (Dakar), en la costa occidental de África. El capitán portugués estaba regresando de la India (Calicut), después de haber “descubierto” Brasil, “accidentalmente”, en el viaje de ida a la India (Calicut).
Después de una larga travesía que duró más de dos meses, la flota lusitana en la cual participa Vespucio arriba a la costa brasileña el 7 de agosto de 1501. A continuación navegan al Cabo de San Roque (16 de octubre) y al Cabo de San Agustín (28 de octubre), desde donde, la costa cambia de dirección, dirigiéndose al sudoeste; es decir, hacia jurisdicción española según el Tratado de Tordesillas. Siguiendo la costa, el 15 de febrero de 1502 ¡los portugueses le ceden el mando de la flota a Vespucio! Y, según la misma carta Mundus Novus, el florentino Vespucio, italiano al mando de una flota portuguesa, pero en representación de los intereses españoles, llegó la primera semana de abril de 1502 hasta los 50° de latitud Sur en la actual Patagonia argentina, muy cerca de la entrada al estrecho que en 1520 atravesaría el navegante portugués Fernando de Magallanes, también al servicio de España. Pero, posteriormente, en la carta que le dirigió a su amigo de la juventud Piero Soderini el 4 de septiembre de 1504, Vespucio se retracta: escribió que solamente había llegadó hasta los 32° de latitud Sur.
El 10 de mayo de 1502 llegan a Sierra Leona, en la costa occidental de África; y a las Azores a fines de julio, para finalmente retornar a Lisboa, con dos naves, el 7 de septiembre de 1502. Después de viaje tan interesante, Américo –seguramente satisfecho por sus recientes logros–, le envió una carta a Lorenzo di Pier Francesco de Médici en mayo de 1503, la cual fue publicada con premura en Paris, en 1503 o 1504, con el título Mundus Novus.
Quinto viaje de Vespucio a América, segundo bajo bandera lusitana. Sale de Lisboa el 10 de mayo de 1503. Parten seis naves, de las cuales cuatro están repletas de “cristianos nuevos”, adinerados, que habían hecho un trato con el rey Manuel I de Portugal. Primero se dirigen a la costa de Sierra Leona en el occidente de África, y desde allí, Américo cruza el Atlántico con solamente dos naves, arribando a la bahía de Todos los Santos (Salvador de Bahía), en la costa de Brasil. De esta manera, Américo tiene el deshonor de inaugurar “oficialmente” la ruta directa entre África y Salvador de Bahía, que ya había sido tantas veces transitada por los árabes durante casi ocho siglos, y por los portugueses más de ocho décadas.

10 de xuño de 2020

Resurrección



Lev Tolstói
Resurrección (1899)

Ressurreição é o romance mais abertamente ideológico de tudo quanto li, até agora, de Leon Tolstoi. Narra a história de Dmitri Nejliudov, um proprietário da classe alta que, nomeado jurado, reencontra no julgamento Katucha Maslova, a antiga empregada de suas tias, acusada de furto e homicídio. Dez anos antes Nejliudov tinha seduzido e engravidado a jovem e sabia agora que a consequência do seu acto a tinha lançado na prostituição. Maslova é injustamente condenada pelo tribunal, e Nejliudov propõe-se acompanhá-la à Sibéria e casar com ela, para deste modo tentar reparar o mal que lhe tinha feito.
Assim se cria o pretexto para uma descrição pormenorizada do sistema penitenciário e o cepticismo com que Tolstoi o encara, pelos olhos de Nejliudov, entretanto auto-proposto a uma espécie de provedor do recluso, tentando influenciar decisões em favor dos presidiários, aparentemente todos injustiçados pelas decisões dos tribunais. E, pelo sistema penal, Tolstoi estende a sua preocupação a toda a organização social, bem como à questão da posse da terra — não se pode esquecer que, nesta época, a Rússia ainda mantinha os servos da gleba — inventariando as injustiças e o seu resultado, para no fim propor uma renovação de natureza religiosa, com vista a aperfeiçoar a sociedade. Algumas destas questões já assomavam em romances anteriores, mas Ressurreição é uma verdadeira apologia de um certo anarquismo, combinado com a sua interpretação pessoal do cristianismo — o que lhe valeu a excomunhão da Igreja Ortodoxa russa em 1901.

En aquel momento, Katucha sabía ya que estaba encinta. Mientras había esperado volver a ver a Nejludov, el pensamiento del niño que iba a nacer, lejos de apenarla, la ponía por el contrario contenta y la enternecían los movimientos que a veces notaba en su vientre. Pero desde aquella noche había cambiado, y el niño que iba a nacer no sería en lo sucesivo más que un estorbo.
Sabiendo que Nejludov debía pasar cerca de su casa, las dos ancianas tías le habían rogado que se detuviese con ellas; pero él había telegrafiado que no podría hacerlo, pues tenía la obligación de llegar cuanto antes a San Petersburgo. Katucha formó entonces el proyecto de ir a la estación para verlo pasar.
El tren la atravesaba de noche, a las dos de la madrugada. Después de haber ayudado a las señoritas a acostarse, Katucha se calzó una botas altas, se cubrió la cabeza con un pañuelo y partió en compañía de Machka, la hijita de la cocinera.
La noche era negra y helada. A intervalos, la lluvia caía en grandes gotas apretadas y se interrumpía. A través de los campos no se podía distinguir el sendero a dos pasos, y en el bosque había la misma oscuridad que en un sótano. Katucha, aun conociendo muy bien el camino, estuvo a punto de extraviarse y llegó a la estación, donde el tren no se detenía más que tres minutos, cuando ya habían dado el segundo toque de campana. Corrió al andén y reconoció inmediata­mente, en un coche de primera clase, a Nejludov sentado junto a la ventana. El vagón estaba vivamente alumbrado. Sentados frente a frente en las butacas de terciopelo, dos oficiales jugaban a las cartas. Sobre la mesita estaban encendidas dos grandes bujías; y Nejludov, con pantalón bombacho y en mangas de camisa, se mantenía apoyado sobre el brazo en el respaldo de un sillón y reía.
En cuanto lo vio, ella, con sus dedos entumecidos, golpeó en el cristal. Pero, en el mismo instante, se dejó oír la señal de partida; el tren se movió lentamente y los vagones empezaron a desfilar con topetazos sucesivos.
Uno de los jugadores se levantó, con las cartas en la mano, y miró por el cristal. Ella golpeó de nuevo y acercó su rostro a la ventanilla. Pero, en aquel momento, el vagón junto al cual se encontraba se puso en movimiento y ella se dedicó a seguirlo, los ojos siempre fijos en la ventanilla. Habiendo intentado el oficial bajar el cristal sin conseguirlo, Nejludov se levantó a su vez, apartó a su camarada y empezó a bajar el cristal. El tren, entonces, aceleró su velocidad, y Katucha tuvo que apretar el paso. Las ruedas giraban más rápidamente aún cuando, estando ya el cristal completamente bajado, el revisor apartó a la joven y saltó al vagón. Ella echó a correr sobre las mojadas losas del andén, llegó hasta el final y estuvo a punto de caerse en los escalones que enlazaban el andén con el suelo. Siguió corriendo cuando ya estaba lejos el coche de primera clase. Los de segunda, y luego, más rápidamente, los vagones de tercera clase, pasaron ante la muchacha sin que ésta interrumpiese su carrera; por fin, el último vagón se alejó, con sus farolillos rojos, y Katucha sobrepasó el depósito de agua. El viento, que, en aquel lugar, no encontraba ya obstáculos, le arrancó el pañuelo de la cabeza y le pegó las faldas a las piernas. Aun habiéndosele volado el pañuelo, Katucha seguía corriendo.
—¡Tita Mijailovna! —le gritó la niña, que tenía dificultad para seguirla—. Se le ha caído el pañuelo.
Katucha se detuvo, se cogió con las dos manos la cabeza echada hacia atrás y estalló en sollozos.
—¡Se ha ido! —exclamó.

Li anteriormente:
O Diabo e Outras Histórias (1889)
A Morte de Ivan Ilitch (1886)
Guerra e Paz (1869)

13 de maio de 2020

Cruzada contra el Grial


Otto Rahn
Cruzada contra el Grial (1933)

Cruzada contra el Grial (ou Kreuzzug gegen den Gral no seu título original) tem como tema a Cruzada Albigense, essa encarniçada luta que a Igreja de Roma, aliada ao reino de França, travou contra a heresia cátara na região occitana.
No entanto, Otto Rahn, um historiador que se dedicou profundamente a esta questão, começa muito antes. Descreve todo o contexto histórico e cultural que fez da Occitânia um novo espaço geoestratégico emergente no séc. XI: a herança druida, o elemento dualista celtibérico, a influência maniqueísta e prisciliana facilmente desembocaram no gnosticismo cátaro, ao mesmo tempo que se expandia a poesia trovadoresca, culturalmente influente noutros espaços geográficos. Deste modo, o alemão Wolfram von Eschenbach reescreveu Parzival, baseado num texto anterior de Chrétien de Troyes sobre a demanda do Gral. O Santo Gral, tradicionalmente associado à taça usada por Jesus Cristo na última ceia para a consagração do vinho, e que depois teria recolhido o seu sangue após a crucifixação, nunca foi incentivado no imaginário do catolicismo certamente devido à sua proximidade cátara; o Gral seria o símbolo da Igreja do Amor, um anagrama de oposição a Roma.
Nesta região meridional de França — Gasconha, Languedoc e Provença — cuja conquista tinha sido um grande esforço para Carlos Magno, por via do catarismo occitano, ao mesmo tempo filosofia, religião, metafísica e culto, forjava-se então um novo país. Os principados locais aliavam-se entre si, e o centro feudal, o Condado de Tolosa, arrastava-os para a órbita da Coroa de Aragão.
Como reacção a esta situação, o papado de aliança com o reino francês, desatou uma perseguição sanguinária (a Inquisição foi fundada nesta altura), tanto mais que os bens dos hereges, pelas leis da época, revertiam para os seus denunciantes. Entre a tomada de Béziers, em 1209, até à queda do último reduto de Montségur, em 1244, vão passar 35 anos de atrocidades; Roma eliminou a concorrência, e Paris encheu os cofres.

Béziers espera la llegada de los cruzados.
Un dragón, vomitando fuego y destrucción, se aproxima en marcha arrolladora...
Un sacerdote cargado de años solicita entrar en la ciudad. Es Reginaldo de Montpeyroux, el obispo que se habla unido a la cruzada. Las campanas llaman a los fieles a la catedral, construida por el maestre Gervasi en estilo románico.
«Los cruzados están a punto de llegar», dice el anciano sacerdote; «entregadnos a los herejes; si no pereceréis todos».
«¿Traicionar a nuestros hermanos? ¡Preferimos que se nos arroje al fondo del mar!»
El obispo, montado en su mula, sale de la ciudad. La inesperada respuesta provoca en el gran prior de Citeaux tal arrebato de cólera, que jura borrar a sangre y fuego a católicos y herejes y no dejar piedra sobre piedra en la ciudad.
En la tarde del 25 de julio, los cruzados están a la vista. Los ribautz (rufianes) y los truands (truhanes), impacientes por el botín, corren por propia iniciativa hacia la ciudad.
Al resto de los peregrinos no les queda otro remedio que seguirles. Las puertas ceden. Los habitantes de Béziers, ortodoxos y herejes, ante su irrupción huyen despavoridos a refugiarse en las dos iglesias. Uno de los barones pregunta al gran abad de Citeaux como se las iban a arreglar para distinguir a los herejes. Quien, si nos está permitido creer a Cesar de Heisterbach, debió de contestarle:
«¡Matadlos a todos! ¡Dios ya reconocerá a los suyos!»
En las Casas de Dios, donde los sacerdotes, revestidos de sus ornamentos, celebran las misas de difuntos, son asesinados todos los ciudadanos: hombres, mujeres y niños («veinte mil» escribe Arnaud de Citeaux al papa). Nadie sale con vida. Hasta los sacerdotes son inmolados ante el altar. Y el crucifijo y la custodia que presentan ante los irruptores, resuenan sobre las losas... [...]
La ciudad fue saqueada. Mientras los cruzados se ocupaban de lleno en su trabajo de verdugos en las iglesias, los rufianes se dedicaron a la búsqueda de su botín. A golpe de espada y de bastón hubo de quitárseles a estos vagabundos saqueadores el producto de su rapiña, pues nadie quería renunciar al botín que se le habla prometido...
La ciudad comienza a arder. El humo oscurece el sol de este horrible día de julio, sol que, sobre el Tabor, se prepara para irse...
«Dios está con nosotros!», exclaman los cruzados; «¡mirad qué milagro! ¡Ni un buitre, ni un grajo, se preocupan de esta Gomorra!».
Las campanas se funden en sus campanarios, los cadáveres arden en llamas y la catedral estalla como un volcán. Corre la sangre, arden los muertos, llamea la ciudad, se desploman las murallas, cantan los monjes, los cruzados asesinan, los gitanos saquean... Así murió Béziers, así se inició la cruzada contra el Grial...
A falta de buitres y grajos, Béziers es entregada a lobos y chacales. Su espantoso final siembra el pánico en las ciudades del Languedoc. No se esperaba esto.
Que la «cruzada» era una «guerra», lo sabia todo el mundo; pero que el Louvre y el Vaticano pudieran rivalizar en rigor para la aniquilación de Occitania, eso no se esperaba. Era ya demasiado tarde cuando se llegó a tal convencimiento: la cruzada, con sus trescientos mil peregrinos, se encontraba en el corazón del país y... el conde de Toulouse, que participaba directamente en el combate, había perdido sus triunfos. ¡Eso era lo peor!

9 de maio de 2020

Siete años en el Tíbet


Heinrich Harrer
Siete años en el Tíbet (1953)

Alpinista experiente, o austríaco Heinrich Harrer era, em 1939, integrante de uma expedição alemã aos Himalaias, que fazia o reconhecimento do Nanga-Parbat. Em Agosto desse ano, enquanto os alpinistas aguardavam na Índia (então colónia britânica) o transporte de regresso, viram restringidos os seus movimentos pelos britânicos. Em Setembro, quando estalou a guerra mundial, foram imediatamente detidos e transportados para o campo de prisioneiros de Dehra-Dun, no Norte da Índia. Após algumas tentativas frustradas de fuga, Harrer e outros prisioneiros conseguiram evadir-se, em Abril de 1944, dispersando-se em vários grupos. Harrer e Kopp chegaram ao Tibete, onde encontraram o outro grupo de fugitivos alemães ainda antes de entrar em Gartok, a primeira localidade importante para a qual se dirigiram. No entanto, as autoridades recusaram-lhes asilo e insistiram para que eles saíssem rapidamente do país, encaminhando-os para o Nepal, via Tradün.
Até Tradün separaram-se os elementos restantes do grupo; dos sete iniciais ficaram apenas Harrer e Peter Aufschnaiter, o chefe da expedição. Nessa altura já a guerra tinha terminado, mas os britânicos, com grande influência no Nepal, continuavam a encarcerar os alemães que encontravam; ora, sabendo pelas notícias do estado de destruição da Alemanha, os dois alpinistas decidiram continuar no Tibete, apesar das enormes dificuldades materiais, do seu estatuto de “ilegais”, e da habitual hostilidade tibetana para com os estrangeiros.
Evitando as estradas principais rumaram então a Lhasa, a capital, ainda uma “cidade proibida” onde, até à data, relativamente poucos europeus tinham entrado. Chegaram em Janeiro de 1946 e, após algumas dificuldades iniciais, foram bem recebidos no seio da classe dirigente. Em Lhasa, apesar do isolamento, os viajantes viram uma panóplia de artigos ocidentais à venda, desde a revista Life aos últimos discos de Bing Crosby, e verificaram já a existência de numerosas raças, religiões e costumes alheios ao Tibete — butaneses, nepaleses, mongóis, sikhs, cazaques, chineses, muçulmanos, casamentos mistos, etc. Apesar da autoridade incontestada dos budistas, era óbvio que o apogeu do país passara há muito; esta “diversidade”, minando a homogeneidade social, prenuncia sempre uma ruína próxima.
Trabalharam como técnicos superiores, em diversas áreas onde Lhasa tinha falta de quadros especializados, contratados pelos monges, pelo Governo e pela nobreza, o que lhes facultou a ascensão social e uma integração perfeita que fez do Tibete a sua segunda pátria. A amizade pessoal de Harrier com Lobsang Samten, irmão do Dalai Lama, abriu-lhe todas as portas e foi convidado a assistir a rituais jamais observados por europeus; essa amizade estendeu-se depois ao então jovem Dalai Lama, de quem se tornou preceptor. Tudo isto teve um fim brusco em Dezembro de 1950, quando o Tibete foi invadido pela horda comunista chinesa de Mao Tse Tung, e Harrer decidiu acompanhar o Dalai Lama na sua viagem rumo ao exílio, no vale de Tchumbi, seguindo depois para a Índia. Aufschnaiter ficou algum tempo mais no Tibete e passou depois para o Nepal.
Sete Anos no Tibete é o curioso retrato de um país entre a intemporalidade e a modernidade, ainda com traços fortes de uma Tradição primordial de que o Dalai Lama na sua função de rei-sacerdote é o indicador máximo nas vésperas da sua fatal derrocada.
Quanto a esta tradução espanhola, de María Teresa Monguio, julgo que não primará pela fidelidade ao texto original. Não sei alemão mas verifiquei que a sexta edição da tradução inglesa, de Richard Graves, publicada em 1954, contém numerosos trechos que aqui estão em falta, encontram-se frases traduzidas com um sentido diferente, e a divisão por capítulos é outra; creio que essa tradução inglesa teria sido uma melhor opção.

El enviado de las autoridades municipales cerró la conversación declarando que Lhasa y el Tíbet son lugares estrictamente prohibidos a los extranjeros y que el Gobierno está firmemente decidido a conservar ese aislamiento.
—¿Adónde iremos a parar —dijo como colofón— si todo el mundo fuera libre de cruzar a su antojo el Himalaya?
¿Que ocurrirá, en realidad, en semejante caso? Pues sencillamente esto: un hombre introducirá en el país un vehículo de ruedas que, tarde o temprano, vendrá a suplir la conducción a espaldas de hombres, sustituyendo también al yak; siguiendo las huellas del primero, otro extranjero, armado con una jeringuilla de penicilina, emprenderá la tarea de expulsar las enfermedades venéreas de las tiendas de los nómadas y de los palacios de los nobles. Pero el tercero y el cuarto se dedicarán a arrancar del suelo tibetano el oro y los demás minerales que encierra. Los torrentes y ríos servirán para mover turbinas; sobre los altos puertos, donde ahora ondean al aire oriflamas y banderolas, se alzaran puestos de gasolina y hoteles de turismo. En fin, expulsando de sus últimos tronos terrestres a los dioses, telesquíes y funiculares se lanzaran a la conquista de las montañas. ¡Y es precisamente contra esa invasión que el Tíbet y su Gobierno están resueltos a defenderse!
[...]
De las provincias orientales llegan noticias alarmantes, se habla de una concentración de tropas chinas de caballería e infantería a lo largo de la frontera. Sin gran confianza, el Gobierno de Lhasa envía varios regimientos a los lugares más amenazados, aunque sabe muy bien que sus destacamentos no podrán detener la marea humana que se dispone a irrumpir en el país. Todas las gestiones encaminadas a lograr alguna ayuda del extranjero acaban en rotundos fracasos. El ejemplo de Corea demuestra la impotencia de las Naciones Unidas; no son capaces de impedir que un osado adversario desencadene un conflicto.
El 7 de octubre de 1950, los chinos cruzan la frontera por seis puntos y tienen lugar las primeras escaramuzas. Lhasa no se entera de la noticia hasta diez días después; mientras los soldados tibetanos mueren en el frente, la población de la capital aún confía en un milagro. En cuanto las nuevas de la invasión llegan al Norbulingka, el Gobierno convoca a los oráculos, y ministros y priores se arrojan a los pies de los adivinos rogándoles que invoquen la bendición de los dioses sobre el país. En presencia de Kundun, los monjes se entregan a sus danzas y exorcismos. De pronto, el oráculo del Estado entra en trance y pronuncia claramente estas palabras: “Hacedle rey”, y se prosterna ante el Dalai. Sus colegas hacen profecías análogas.
Entre tanto, las tropas chinas siguen progresando y su avance alcanza más de cien kilómetros. Algunas unidades tibetanas se rinden y otras huyen. El gobernador del Tíbet oriental pide por radio autorización para deponer las armas, pues ya es inútil toda resistencia; pero la Asamblea Nacional se la niega. Después de volar los depósitos de municiones, el gobernador huye en compañía del operador de radio Robert Ford; a los dos días, las unidades chinas les cortan la retirada y los hacen prisioneros. En la actualidad, el desgraciado Ford todavía se pudre en una cárcel china.
Una vez más, el Gobierno tibetano pide a las Naciones Unidas que intervengan. Por su parte, la radio de Pekín proclama que sus tropas vienen a “liberar a un pueblo hermano, de la influencia extranjera”. ¡La verdad es que si algún pueblo se halla al margen de las rivalidades políticas y económicas de las grandes potencias, ese pueblo es el Techo del Mundo! ¡Si existe un país en el que no hay nada que “liberar”, es el país del Dalai Lama! Lake Success prodiga las buenas palabras y declara: “Las Naciones Unidas siguen confiando en que se llegue a un acuerdo entre la China y el Tíbet”.
La suerte esta echada; los tibetanos que temen la dominación extranjera se disponen a expatriarse y, con ellos, Aufschnaiter y yo nos preparamos también a abandonar este país al que tanto debemos.
Las horas que he pasado en compañía de Kundun se cuentan entre las mejores de mi existencia. Hemos tratado de agradecer al Gobierno y al Dalai Lama su hospitalidad, cumpliendo las tareas que se nos encomendaron, pero ni mi compañero ni yo fuimos nunca instructores militares, por más que les pese a los centenares de periódicos europeos que lo han afirmado.
Las noticias catastróficas siguen afluyendo a la ciudad santa, y el pontífice se preocupa por nuestra suerte. En el curso de una larga conversación que sostengo con el, me aconseja que aprovechemos su regreso al Potala para abandonar la capital; así, nuestra marcha pasará inadvertida, y si es necesario pondremos por excusa que queremos visitar Chigatse y el Tíbet meridional.
Contrariamente a los deseos expresados por la Asamblea Nacional, todavía no se ha proclamado la mayoría de edad de Kundun; se está esperando una señal favorable. Pero surge además otro interrogante: ¿que va a ser del soberano después de la ocupación de Lhasa? En cuanto a esta cuestión, existe un precedente: en 1910, el decimotercer Dalai Lama se refugió en la India para escapar a las tropas chinas, y su marcha salvó al país. Sobre esto también habrá que esperar la respuesta de los dioses.

2 de maio de 2020

Nossa Senhora de Paris


Victor Hugo
Nossa Senhora de Paris (1831)

Notre-Dame de Paris, traduzido em português por Nossa Senhora de Paris e, mais recentemente por O Corcunda de Notre Dame (título tomado da versão em inglês), é, a par de Os Miseráveis, a mais conhecida obra do francês Victor Hugo. Autor de uma considerável bibliografia, contam-se apenas nove romances nessa lista, um deles escrito aos 16 anos, um ano antes de dar início à publicação de uma revista literária, de parceria com os irmãos Abel e Eugène.
Em Nossa Senhora de Paris, Victor Hugo vai narrando uma história em pequenos quadros que, com o avançar do livro, vão compondo um largo panorama onde as partes se vão ajustando, com alguma previsibilidade, diga-se. Passada em 1482, em Paris, o autor demora-se com prazer na descrição dessa cidade histórica, nesses espaços urbanos dos quais já quase nada restava no seu tempo, e, claro, da catedral de Notre-Dame que deu o título à obra. Há mesmo dois capítulos inteiros dedicados às descrições históricas e arquitectónicas da Catedral e da Paris medieval. Não sendo parisiense de nascimento, Victor Hugo revela uma afinidade pela cidade que está, talvez, explicado num atributo da personagem de Pedro Gringoire: «...o que lhe provocara um gosto violento pela arquitectura, inclinação que, no seu coração, substituíra a paixão pelo hermetismo, e de que aliás não passava de um natural corolário, visto existir íntima ligação entre a hermética e a maçonaria. Gringoire passara do amor por uma ideia para o amor pela forma dessa ideia.» Ou seja, a arquitectura como um livro de pedra, que se deixa ler por quem dominar o alfabeto.
Nossa Senhora de Paris, uma obra de imensa popularidade desde a sua época, é um marco da literatura romântica. Na base do romance histórico há uma história trágica de amor, cujo centro é Esmeralda, uma jovem cigana órfã, de extraordinária beleza, que perturbará o destino de quatro homens: Cláudio Frollo, o arcediago, de ascendência nobre e de uma inteligência notável, que acabará como um criminoso, fruto da sua obsessão doentia; Quasímodo, o sineiro da catedral, filho adoptivo do arcediago, sem ilusões devido às sua natureza disforme, basta-lhe apenas que a cigana tolere a sua presença; depois há Pedro Gringoire, um literato a quem a adversidade não dá tréguas, salvo da forca por Esmeralda num impulso de piedade; e, por último, Febo de Châteaupers, capitão da guarda real, o único que Esmeralda ama, mas que por ela sente apenas desejo, uma vez que está noivo de uma fidalga rica.

Se experimentássemos agora penetrar até à alma de Quasímodo, através dessa crosta espessa e dura, se pudéssemos sondar as profundezas desta mal feita organização, se nos fosse dado contemplar, com uma luz pelo lado de trás, esses órgãos sem transparência, explorar o interior tenebroso dessa criatura opaca, aclarar-lhe os recantos escuros, os becos absurdos de projectar, de repente, uma luz viva sobre a alma agrilhoada no fundo daquele antro, encontraríamos incontestavelmente a desgraçada numa triste situação, definhada e raquítica, como esses prisioneiros dos piombi de Veneza e que envelheciam, dobrados ao meio, numa caixa de pedra excessivamente baixa e acanhada.
É certo que o espírito se atrofia num corpo defeituoso. Quasímodo mal percebia que se movia às cegas dentro de si uma alma feita à sua imagem. A impressão dos objectos sofria uma refracção considerável antes de lhe alcançar o cérebro. Este cérebro era um ambiente especial: as ideias, que o atravessavam, saíam de lá todas deformadas. A reflexão proveniente dessa refracção era necessariamente divergente e quebrada. Por consequência, mil ilusões de óptica, mil aberrações de raciocínio, mil desvios onde o seu pensamento divagava, ora louco, ora idiota.
O primeiro efeito desta fatal organização era o de transtornar-lhe o olhar que lançava sobre as coisas. Não recebia delas quase nenhuma percepção imediata. O mundo exterior parecia-lhe muito mais afastado do que a nós.
O segundo efeito dessa sua desgraça foi a de torná-lo mesmo mau.
Efectivamente, era mau porque era selvagem e era selvagem porque era feio. Na sua índole, havia uma lógica tal como existe na nossa.
A força, que tão extraordinariamente se lhe desenvolvera, era mais uma causa da sua maldade. Malus puer robustus, dizia Hobbes.
Aliás, há que lhe prestar esta justiça: a maldade não era talvez inata nele. Desde que ensaiara os primeiros passos entre os homens, sentira-se e, depois, viu-se, vilipendiado, espezinhado, repelido. Para ele, a palavra humana era sempre uma caçoada ou uma maldição. Ao crescer, só encontrou hostilidades à sua roda. Apoderara-se dela. A maldade geral inoculara-se-lhe. Apanhou a arma com que o tinham ferido.
Para mais, só contrariado virava a cara para o lado dos homens. A sua catedral bastava-lhe. Ela povoava-se de figuras de mármore, de reis, de santos, de bispos, que, ao menos, não se lhe riam na cara e só tinham para ele um olhar sereno e benevolente. As outras estátuas, as dos monstros e dos demónios, não lhe afirmavam ódio. Pareciam-se de mais com ele para que tal sucedesse. Motejavam mais depressa dos outros homens. Os santos eram seus amigos e abençoavam-no; os monstros eram seus amigos e guardavam-no. Por isso, tinha prolongados desabafos com eles. Desta sorte, passava às vezes horas esquecidas, acocorado diante de uma dessas estátuas, a conversar solitariamente com ela. Se aparecia alguém, escapulia-se como um amante surpreendido numa serenata.

Li anteriormente:
O Último Dia de um Condenado (1829)

22 de abril de 2020

Wilt in Nowhere


Tom Sharpe
Wilt in Nowhere (2004)

Os primeiros três livros da série Wilt foram publicados em oito anos, mas tardou vinte anos a aparecer o volume seguinte, Wilt in Nowhere ou Wilt em Parte Incerta na tradução portuguesa.
Aparentemente, pouco tempo passou desde a última aventura de Wilt, pois reencontramos os nossos velhos conhecidos, o agora superintendente Hodge, o inspector Flint e o sargento Yates e a referência a factos passados em Wilt on High — até o tema é o mesmo, na metade que toca a Eva: a suspeição de tráfico de drogas.
O livro começa com o convite recebido dos tios americanos de Eva para que a família Wilt os visite, pagando eles todas as despesas — pois são um casal milionário, sem descendência. Enquanto Eva vê aqui uma oportunidade para lhes causar boa impressão, como potencial herdeira, Wilt só pensa em escapar ao compromisso, antevendo um aborrecimento sem fim. Assim, Eva e as quatro gémeas seguem para o Tennessee de avião, e Henry Wilt, com a desculpa do trabalho, e com recurso a algum dinheiro que tinha posto de lado em segredo, vai aproveitar a oportunidade para fazer uma viagem pedestre ao longo do rio Wye, na região rural de Hereford, nas Midlands inglesas.
Eva, por ter ficado sentada ao lado de um traficante de droga no avião, mete-se numa embrulhada gigantesca, arrastando consigo todos os que a rodeiam. Já Henry Wilt vai cair, sem saber como, no centro de uma maquinação familiar que envolve fogo-posto, pornografia e a morte de um político, passando uma boa parte do livro inconsciente. Tudo isto condimentado pelas situações mais caricatas e inesperadas, como é habitual nesta série.

Hodge nodded triumphantly. 'Add this to the catalogue,' he said. 'The day Mrs Wilt flies into Atlanta her husband goes to the building society and draws out a large sum in cash. In cash. And where does he leave his credit cards and passport? At home. On the kitchen table. That's right, on the kitchen table,' he said as Flint's face registered astonishment. 'Bed not made. Washing-up not done. Dirty plates still on the table. Drawers in the chest of drawers in the bedroom open. Car still in the garage. Nothing missing except Mr Henry Wilt. Not a bloody thing. Even his shoes are there. We got the cleaning lady to check them out. So what does that tell you?'
'It makes a change,' said Flint sourly. He disliked being wrong-footed, especially by clowns like Hodge.
'Makes a change? What's that supposed to mean?' Hodge demanded.
'It means just this. The first time I ran into Wilty, it was his wife was missing. Supposed to be down a damned great pile hole at the Tech. Only it just so happens Wilt has stuffed an inflatable plastic doll dressed in Mrs Eva bloody Wilt's clothes down there and they put twenty tons of pre-mix on top of her. In fact she is living it up with a couple of daffy Americans on a stolen boat on the Broads. So where is Mrs Wilt now? Sitting pretty...well, as near pretty as she'll ever get at any rate, in the United States and it's our Henry who is missing. Yes, that makes a change. It does indeed.'
'You don't think he's done a runner?' Hodge asked.
'With Wilt I've given up thinking. I have not the faintest idea what goes on in that mad blighter's mind. All I do know is it won't be what you think it is. It's going to be something you wouldn't even dream of thinking about. So don't ask me what he's done. I wouldn't have a clue.'
'Well, my guess is he's getting himself an alibi,' said Hodge.
'With his credit cards and all on the kitchen table?' said Flint. 'And none of his clothes missing? Doesn't sound much like a voluntary disappearance to me. Sounds more like something has happened to the little bastard. Have you checked the hospital?'
'Of course I have. The first thing I did. Checked every goddam hospital in the area. No one answering his description has been booked in. I've checked the morgues, the lot, and he is not around. Makes you think, doesn't it?'
'No,' said Flint firmly. 'It does not. I've told you. Where Henry Wilt is concerned I don't even try to think. It hurts too much.'

Li anteriormente:
Wilt on High (1984)
The Alternative Wilt (1979)
Wilt (1976)

17 de abril de 2020

La geografía secreta de América

Jacques de Mahieu
La geografía secreta de América (1978)

Nascido em Marselha em 1915, Jacques de Mahieu mudou-se para a Argentina por volta dos 30 anos e, naturalizado, viveu nesse país até ao final da vida. Foi um dos ideólogos do movimento peronista, mas o seu maior interesse residia na antropologia, área em que foi professor, apesar da sua formação em filosofia, medicina, ciências económicas e ciências políticas. Alguma da sua obra escrita tem por tema a América pré-colombiana, com títulos como Les templiers en Amérique, Drakkars sur l’Amazone ou El rey vikingo del Paraguay, onde defende teorias desenquadradas da História comummente aceite.
É o caso do presente livro, cujo título completo é La geografía secreta de América antes de Colón, e se debruça sobre o conhecimento geográfico prévio à época dos Descobrimentos. Há uma referência abundante a mapas antigos, com destaque para o mapa de Ptolomeu, do séc. II, que serviu de referência à cartografia até ao séc. XVI, ou ao mapa de Waldseemüller, de 1507, onde aparece desenhado pela primeira vez o continente americano com a designação actual. Referem-se os conhecimentos dos romanos na navegação do Índico até ao extremo Oriente, o estabelecimento de normandos e víquingues nas costas ocidentais do Atlântico Norte por volta dos sécs. X-XI, e uma série de outros feitos e viagens de exploração, aparentemente incongruentes com a linha histórica estabelecida, suficientemente documentados para se considerar reescrever algumas passagens dos livros de História. Interroga-se também sobre a pessoa de Cristóvão Colombo que, com um manto de sombra sobre o seu passado, foi igualmente alvo de outras especulações por outros autores.
A tese subjacente ao livro é que, no caso dos navegadores portugueses e espanhóis na época do Descobrimento da América, as suas viagens tinham um suporte teórico extremamente sólido, com recurso a uma infinidade de mapas de diferentes épocas e culturas, de rotas já usadas por víquingues e franceses mas mantidas em segredo (e também de exploração clandestina por conta própria) que lhes permitiu, desde o início da viagem, ter uma ideia bastante aproximada do que ia ser descoberto — ou redescoberto.

Entre las islas misteriosas del Atlántico que mencionamos en el capítulo II, hay una cuyo nombre habrá hecho sobresaltarse al lector no prevenido: aquella que el Portulano Medíceo llama, en 1351, Brazil; el mapa de Pizigano, en 1367, Braçir, con una cedilla superflua, para evitar la pronunciación italiana de la c; los de Blanco, en 1436, y de Fra Mauro, en 1457, Berzil; el de Benincasa, en 1482, Braçill. Pizigano la hace aparecer en el mismo mapa, en tres lugares distintos: al oeste y al sudoeste de las costas de Irlanda y al oeste del Cabo San Vicente, en el extremo sur de Portugal. Pareto, en 1455 nos la muestra dos veces, al oeste de Irlanda y a la altura del Cabo San Vicente. En uno de los mapas de su Atlas, Blanco la sitúa en el lugar exacto del actual Estado brasileño de Pernambuco. Se tenían, pues, en los siglos XIV y XV, datos contradictorios acerca de una tierra transoceánica que, según Pizigano, debía su nombre a los normandos.
Este nombre, en sí, se conocía en Europa desde el siglo IX. Los árabes, en efecto, importaban de la Insulindia y el Malabar extractos de una madera colorada, el bakkam (Caesalpinia Sapan y Pterocarpus Santalinus) que servía para teñir géneros. Este producto, los italianos lo llamaban bresill, brasilly, braxilis, verzino y, en latín, bresillum o verzinum. Los catalanes, que servían de intermediarios entre Italia y Castilla, decían brazil. Esos extractos llegaban a Europa, junto con las especias, en forma de pulpa, de laca y de polvo, lo que les daba un alto valor con un pequeño volumen. Los barcos árabes no estaban en condiciones de transportar troncos y no hubiera sido su interés hacerlo. Tal situación se transformó repentinamente, hacia mediados del siglo XIII, cuando empezaron a entrar en Francia, por los puertos de Normandía, rollos de brasil. No hay equivocación posible al respecto, puesto que, durante el reinado de San Luis, el Libro de los Oficios de Estienne Boileau reglamentaba su empleo por ebanistas y toneleros.
¿De dónde los normandos importaban esa madera? No del Asia, de seguro, pues ningún barco de Europa, en aquella época, navegaba en el Océano Indico. Para hacerlo, hubiera sido necesario dar la vuelta al Cabo de Buena Esperanza, y los dieppenses no iban, a lo largo de las costas africanas, más allá del río Zaire (Congo). Por lo tanto, habían encontrado una nueva fuente de abastecimiento. Ahora bien: fuera del Asia meridional, el brasil sólo existe en la América Central y el Amazonas: una variedad del sapang, la Caesalpinia brasiliensis. Por supuesto, marinos y comerciantes guardaban, según era costumbre, el secreto más riguroso respecto de la situación de las tierras descubiertas. Pero, lógicamente, no podían disimular su existencia: los productos que traían de ellas la hacía manifiesta. Se empezó, pues, a hablar de la isla —todas las tierras nuevas eran islas, ya lo dijimos— donde se procuraban el brasil. Y como no se sabía con exactitud donde se encontraba, se la situaba en los mapas en función de rumores contradictorios entre los cuales nada permitía elegir. Algunos cartógrafos llegaron así a aceptar la existencia de varias islas del mismo nombre. En Normandía y, en especial, en Dieppe, se sabía, por cierto, a qué atenerse. En 1503, cuando ya no era necesario —ni posible— guardar el secreto, el capitán Paulmier de Gonneville mencionaba, en un documento judicial entregado por él, después del naufragio de su barco, en la sede del Almirantazgo a instancia del Procurador del Rey, el “país de las Indias Occidentales adonde, desde hace unos años, los dieppenses y malonenses y otros normandos van a buscar madera de teñir en rojo”, ese país que los portugueses llamaban Terra Sanctae Crucis, pero que los franceses jamás designaban con otro nombre que el de Brésil.
Las tradiciones dieppenses han conservado el recuerdo de un viaje que el capitán Jean Cousin habría hecho, en 1488, a las bocas del Amazonas. Cuando se dirigía hacia el África, su barco habría sido desviado de su ruta, a la altura de las Azores, por una fuerte corriente marina —evidentemente la Corriente Norte-Ecuatorial— y llevado hacia el oeste hasta la desembocadura de un enorme río. Este relato no está documentado, pues un bombardeo inglés destruyó, en 1694, los archivos del Almirantazgo del puerto normando. Los detalles que nos proporciona, dejan, sin embargo, muy poca duda respecto de su realidad. No era éste, por lo demás, sino un viaje de rutina y el África constituía su camuflaje habitual. Si se habló de él, en la época del descubrimiento oficial de América; cuando el secreto ya no tenía mayor razón de ser, fue probablemente por un nombre que debió de llamar poderosamente la atención de los dieppenses. El segundo de Cousin, en efecto, era un castellano llamado Pinçón que intentó, durante el viaje, sublevar a la tripulación y fue destituido, a la vuelta, por el Consejo del Almirantazgo. ¿Tratábase de Martín Alonso Pinzón, capitán de La Pinta, a las órdenes de Colón, que insistió tanto, y con razón, como si conociera el camino, para que la flotilla singlara hacia el sudoeste, lo que obtuvo finalmente, no sin dar después una linda prueba de indisciplina? No podemos descartar esta hipótesis que, si fuera exacta, nos indicaría por qué Pinzón se fue a Roma. También nos explicaría por qué y cómo Vicente Yánez Pinzón, sobrino de Martín Alonso, armó de su hacienda, en 1499, una expedición a América y alcanzó justo el punto de la costa que, según todo parece demostrar, había tocado Cousin once años antes.

14 de abril de 2020

Perfil do Marquês de Pombal

Camilo Castelo Branco
Perfil do Marquês de Pombal (1882)

No ano em que se comemorou o centenário da morte do Marquês de Pombal, Camilo Castelo Branco publicou este livro ao arrepio da história oficial. Não para estragar a festa, que já tinha decorrido, mas para que os interessados pudessem conhecer a verdadeira face de Sebastião José de Carvalho e Melo, “neto do padre Sebastião da Mata Escura e da preta escrava Marta Fernandes”. E, assim, desfia um inventário, bem fundamentado e documentado, de actos despóticos, arbitrários, corruptos, incompetentes, toda a espécie de abusos, usurpações e vinganças mesquinhas com vista ao favorecimento pessoal ou pelo ódio que votava aos jesuítas, durante “vinte e sete anos de terror, de tristeza, de uma desconsolação profunda” em que o marquês, um arrivista com toda a máquina do Estado e da Inquisição subjugada ao seu dispor, aproveitando-se do carácter fraco do rei D. José I, reinou como um verdadeiro tirano — e desmonta ainda, uma a uma, as pretensas realizações do seu ministério.
No Proémio, Camilo Castelo Branco, insuspeito de clericalismo, ao constatar as alterações que o tempo provoca sobre a perspectiva dos eventos históricos, faz uma pergunta retórica inquietante: «Se os ultraliberais de 1882 estão com o Marquês de Pombal, quem nos afirma que as confederações republicanas e ateístas de 1982 não hão-de estar com os jesuítas?»
Talvez não “com os jesuítas” mas com “o jesuíta”... um desvio de 30 anos.
No texto abaixo fica a descrição de um dos últimos crimes do marquês, o incêndio da Trafaria, cometido quando o rei estava já no seu leito de morte.

Na praia da Trafaria, onde viviam cinco mil pessoas, campanhas remediadas de pescadores, muitas mulheres e criancinhas, havia um centenar de intrusos, caridosamente acolhidos pela tribo trabalhadora e boa dos homens do mar. Eram filhos do povo foragidos ao recrutamento.
A Espanha ameaçava-nos. O marquês dispunha de um mesquinho exército de 40.000 homens. O almirante de Castela surgira no Tejo com doze naus alterosas como outrora os galeões de Filipe II. Toda a marinha portuguesa era doze naus de linha e algumas fragatas. No entanto, o erário continha 75 milhões, amuados, estéreis, escondidos como um roubo; e o marquês era... o primeiro estadista que ainda viu Portugal. Fazia-se um recrutamento acelerado e violento. Os mancebos da indústria, dos ofícios e da lavoura acolhiam-se à Trafaria, ensaiando uma república, labutando na pesca. O marquês de Pombal tinha 78 anos e o coração de palmo e meio cada vez mais empedrado e cheio daqueles seixos que lhe encontrou o doutor Picanço. Em víscera tão cheia de cascalho já não cabia um sentimento generoso. Laceravam-no por dentro os arpões da vingança — queria cevar-se, remoçar-se no sangue daquela ralé que, ali, defronte de Lisboa, ousara insultar a sua autoridade, fugindo-lhe.
Cercá-los, manietá-los, chibatá-los na recruta, pô-los na dianteira do exército em batalha, com o peito às balas, pareceu-lhe desforço muito suave, impróprio dos seus precedentes. Resolveu queimá-los numa grande fogueira, que enroscasse cinco mil vítimas, mulheres, velhos, crianças, enfermos, com a serpente das suas labaredas. Na véspera do século XIX, só ao marquês de Pombal podia acudir o alvitre de abrasar uns rapazes que fugiam à desgraçada vida militar em Portugal.
Chamou Diogo Inácio de Pina Manique, intendente da polícia, deu-lhe uma ordem lacónica, e pôs à sua disposição 300 soldados e algumas dúzias de archotes.
A gente da Trafaria adormecera cansada da luta do dia com os escarcéus. A invernia fora grande. Manique, por alta hora da noite, atravessou o Tejo em faluas com os 300 soldados. Ao romper da aurora de 24 de Janeiro de 1777, a Trafaria estava cercada por um cordão de tropa. Da fileira saíram alguns soldados com archotes acesos. Eram de tabiques e colmaçadas as casas. A um tempo, rompeu o incêndio nas choupanas circunjacentes aos arruamentos interiores onde havia grandes depósitos de víveres em barracas de lona. O fogo cruzou em línguas rubras que a ventania serpejava de umas casas para o colmo das outras. Despertaram aquelas cinco mil vidas na sufocação da fumarada e no estralejar das madeiras.
Os desgraçados corriam nus por entre as chamas. Alguns levavam sobraçados os seus doentes, os seus velhos e as crianças. Desses, morreram bastantes que não puderam romper o assédio do fogo, além do qual estava o assédio da tropa. Muitos salvaram-se porque os soldados, compadecidos, transgredindo as ordens do Manique, abriram clareiras por onde escapassem. E os que se escapuliram levaram consigo a nudez e a fome, por que todos os seus haveres fumegavam nas cinzas do pavoroso incêndio.

Li anteriormente:
A Corja (1880)
Eusébio Macário (1879)
Amor de Perdição (1862)

12 de abril de 2020

De Angola à Contracosta

Hermenegildo Capelo & Roberto Ivens
De Angola à Contracosta (1886)

Já me referi anteriormente a Hermenegildo Brito Capelo e Roberto Ivens aquando da leitura do livro Como eu Atravessei África de Serpa Pinto. Capelo e Ivens acompanharam Serpa Pinto no início da expedição de 1877, separando-se dele no Bié, e dessa viagem deram conta no livro De Benguela às Terras de Iaca (1881). Este De Angola à Contracosta – Descrição de uma viagem através do Continente Africano, respeita à expedição seguinte, comandada pelos dois oficiais da marinha real, novamente patrocinada pela Sociedade Geográfica de Lisboa e pelo rei D. Luís.
As dificuldades da viagem não foram muito diferentes das descritas por Serpa Pinto no livro atrás referido, com algumas cambiantes: estes exploradores preveniram-se contra as febres e, atravessando normalmente zonas ricas em caça, não os afligiu demasiadamente a fome, pese embora a monotonia do cardápio; em compensação, atravessaram regiões infestadas pela mosca tsé-tsé que lhes dizimou o gado acompanhante, e tiveram de suportar tempestades quase diárias combinadas com uma temperatura e humidade elevadas nas regiões mais setentrionais que percorreram.
Após uma partida em falso em Porto Pinda, na costa angolana, frustrada pela fuga de 42 carregadores, o trajecto iniciou-se em Moçâmedes em 24 de Abril de 1884. Prosseguiu por Huíla (Sá da Bandeira), atravessou os rios Cunene, Cubango, Cuito, a confluência do Quembo com o Cuando e, a partir daqui, num percurso aproximado ao que Serpa Pinto trilhara quatro anos antes para atingir o Zambeze, pelos pântanos e lameiros entre o Lobale e o Barótze. A travessia deu-se na proximidade de Libonta, e a viagem continuou a par do Liambae (na verdade o Zambeze, no seu curso superior) e logo pelo Nordeste para transpor o Cabompo, afluente do Zambeze. Pouco depois determinaram a nascente do Lualaba (a origem do ramo médio do rio Zaire) e internaram-se na região do Garanganja (Katanga) com o objectivo de assentar em definitivo a posição aos seus numerosos afluentes. Em Bunqueia permaneceram duas semanas em recuperação e, partindo depois em busca do Luapula a 24 de Dezembro, deambularam perdidos pelas matas de Caponda, por incapacidade do guia, até 1 de Fevereiro, data em que finalmente encontraram a margem do dito rio. Nessa área permaneceram até ao final de Fevereiro, sem conseguir convencer o régulo local a abrir-lhes o caminho para o lago Bangueolo — uma repetição do que tinha sucedido em Bunqueia, quando pretendiam seguir para o lago Moero. Sem possibilidade de seguir para Norte ou Este, e com os recursos a caminho do esgotamento, a expedição cortou para Sul, rumo ao Zambeze, avistado finalmente no dia 25 de Abril, na proximidade de Chôa, após semanas de árduas marchas. Esta era já uma região colonizada por portugueses, e descreve-se o seu estabelecimento na Zambézia, desde Kabora-bassa até às margens do Cafué, considerando o Zambeze uma via fluvial comparável ao Zaire, mas numa geografia mais favorável e mais rica, que urgia consolidar. A partir daqui a conclusão da viagem estava assegurada; a expedição seguiu até Zumbo pela margem esquerda do rio, onde repousou, antes de abalar rio abaixo a 23 de Maio. Desembarcados em Caxomba, para evitar as cachoeiras de Kabora-bassa, o percurso atravessou uma região seca na margem direita, então palco de guerras e rebeliões, até chegar à vila de Tete, onde se podia dar por terminada a missão. Três dias depois voltaram a embarcar descendo o rio até Mazaro, onde fizeram transbordo, prosseguindo pelo Cuácua durante dois dias, até chegar por fim a Qelimane e à embocadura oceânica de onde avistaram o Índico, no dia 26 de Junho de 1885, após 4.500 milhas percorridas.
O livro inicia-se com uma breve resenha histórica da exploração portuguesa no interior do continente, um percorrer constante desde 1445, quando João Fernandes foi o primeiro europeu a fazer este tipo de expedições, em busca do lendário reino do Preste João, que se acreditava então poder situar-se em África. Contém depois um resumo do historial do reino do Congo, um vastíssimo território reconhecido como vassalo da coroa portuguesa já nos sécs. XVI e XVII; a insalubridade, letal para o europeu, impediu de fazer do rio Zaire o mesmo que no Amazonas, caso contrário teria nascido aqui um segundo Brasil. Donde se conclui que, contrariamente ao que a Conferência de Berlim (1884-85) predicou acerca da prevalência da «ocupação efectiva» sobre a «ocupação histórica» (um modo de as potências europeias, com o Reino Unido, a França e a Alemanha à cabeça, justificarem a partilha de África segundo os seus interesses), Portugal se viu de facto pilhado de um imenso território que tinha reconhecido ao longo de 440 anos. Incapaz de fazer valer o seu direito por manifesta falta de meios humanos e materiais, estas explorações de 1877 e 1881 são a tentativa final de salvar o que era possível, ajudando a delinear o «mapa cor-de-rosa», o território compreendido entre Angola e Moçambique, com a zona central que os ingleses viriam a colonizar nas duas Rodésias e na Niassalândia. Isto colidia uma vez mais com os interesses britânicos, determinados a unir o Cairo ao Cabo sem descontinuidades, e levou ao humilhante ultimatum de 1890 pelos nossos «velhos aliados» — uma aliança que, diga-se de passagem, descontando talvez 1385, só nos tem trazido prejuízos. Este acontecimento foi mais uma machadada no prestígio da monarquia; o hino nacional, A Portuguesa, nasceu por esses dias entre os republicanos, e nunca se deve esquecer que o último verso era, na verdade, Contra os bretões, marchar, marchar!

N'um logar chamado Quiúla deu-se com elle certo caso que nos deixou vexados aos olhos dos nossos, arreigando-se ainda uma vez em seu espirito a idéa de que os n'gangas possuem o segredo de poder adivinhar.
Eis o facto.
Quando proseguiamos por meio das planuras, passando proximos de plantações ou senzallas desertas de ba-nhengo, avisou-nos ao segundo dia o n'ganga, de que urgia tomar toda a cautela com os povoadores, porque, sendo pelo geral hostis, como quasi todos os ba-lobale, eram sobretudo e muito especialmente consummados ladrões!
Esta declaração na bôca de um preto do mato não nos mereceu grande confiança, pois o gentio, por andar sempre fugido, parecia extremamente timido, e pouco disposto a qualquer tentativa audaciosa.
Desprezando assim as suas indicações, alvitrámos-lhe um outro modo de ganhar a vida, pela improficuidade d'aquelle; recommendação que ouviu attento, e depois afastou-se para o mato, procedendo de cabaça na mão a outras adivinhações, ás quaes de longe assistiamos, quando por vezes nos davamos ao trabalho de observal-o.
Approximava-se o sol do horisonte, e tinhamos acabado de jantar, quando o nosso homem de novo se apresentou, encontrando-nos então em melhor disposição que de manhã.
Vinha satisfeito e com ar de quem decidíra questão importante, após as profundas locubrações a que se entregára.
Chamado o interprete Pedro, rapaz da nossa comitiva, acocoraram-se os dois, começando o n'ganga a fallar. A complicada oração prolongou-se por um bom quarto de hora.
—Então, que disse elle? inquirimos nós a Pedro, esperando alguma revelação estupenda.
—Por ora, respondeu este muito fleugmaticamente, ainda não disse nada!
Escusado será descrever aqui o nosso espanto perante similhante facto, que só julgavamos apanagio dos tribunos da velha Europa, e, silenciosos, esperámos se dignasse proferir alguma cousa.
Então?
Tornando a tomar a palavra, arengou longo tempo o quer que fosse. Pedro nos explicou ser uma especie de fabula, relativa a scenas passadas entre corpulento elephante que se não arreceára das ameaças de um grupo de bissonde (formigas guerreiras), as quaes, colhendo-o a dormir pela noite, se lhe enfiaram pela tromba, levando o animal no desespero a suicidar-se, batendo com ela pelas arvores.
Additou outra, concernente á entrada dos ratos pela noite nos celleiros, etc., que, por mal interpretada, ficámos sem comprehender o que elle desejava e se nos eram applicaveis similhantes narrativas, até que dispostos a deixar de escutal-o, íamos levantar a sessão, quando o mysterioso interlocutor se decidiu por fim a explicar-se.
Queria primeiro que tudo quatro jardas de fazenda, como pagamento do serviço que se propunha fazer-nos; logo depois de recebidas, declarou que acabava de adivinhar que dentro de limitadissimo espaço, quando muito de dois sóes, seriamos infallivelmente roubados pelos naturaes da terra onde estavamos.
Até aqui não offerece originalidade a historia, nem credito deviam valer as indicações do negro; o certo, porém, é que n'essa noite ás duas horas eramos effectivamente roubados, sendo para lamentar que elle n'ganga não tivesse aproveitado para si a parte que lhe cabia da revelação, pois foi tambem uma das victimas, perdendo o proprio machado!
Introduzindo-se de subito no acampamento, os ba-nhengo furtaram-nos uma arma, uma espada, os pannos de um homem e o machado; caso estupendo, e que jamais em nossa viagem se tornou a repetir, pois não ousam os indigenas penetrar nos acampamentos pela noite, ficando os nossos convencidos que nada ha como um n'ganga para adivinhar, sendo tambem certo não haver quem como elle fique tão tranquillo quando o expoliam!

5 de abril de 2020

Los Buddenbrook


Thomas Mann
Los Buddenbrook (1901)

Tendo em conta o subtítulo da obra, Decadência de uma família, desde as primeiras páginas de Os Buddenbrook, sabemos para onde se dirigirá a história. Prendem a atenção as descrições da opulência burguesa da casa, que por sua vez tinha sido comprada a um comerciante arruinado, porque sabemos que existe um destino marcado e aqueles sinais de riqueza serão um dia dissipados.
Com uma narrativa que atravessa 40 anos e quatro gerações de uma família de comerciantes da alta burguesia alemã, em pleno séc. XIX, o livro centra-se sobretudo em duas personagens, Thomas Buddenbrook e sua irmã Antonie (ou Tony), com temperamentos muito diferentes, que têm uma forte noção do peso do nome familiar e tentam, de forma voluntariosa mas sem grandes resultados práticos, transmitir e melhorar o legado às gerações futuras. Assim, quase sempre por manifesta infelicidade, Thomas Buddenbrook não só não conseguirá conservar o grosso do seu património como, à aproximação do final da vida, tem a percepção que o filho, doente e sem outro interesse para além da música, será incapaz de dar continuidade à firma.
Los Buddenbrook, nesta edição em espanhol com tradução de Isabel García Adánez, foi o primeiro romance de grande fôlego do escritor, editado quando ele tinha 25 anos; Thomas Mann parece-me um autor mais interessante nas obras extensas (A Montanha Mágica, Doutor Fausto) do que nas novelas curtas e este livro confirma a minha opinião.

Cuando llegaron al «templo del mar» ya comenzaba a caer la tarde; el otoño estaba bastante avanzado. Permanecieron de pie en una de las habitaciones que se abrían a la bahía, en las que olía a madera, igual que en las casetas de la casa de baños, y cuyas toscas paredes estaban llenas de inscripciones, iniciales, corazones y versos. Uno junto al otro, contemplaron la pendiente cubierta de musgo verde que bajaba hasta la playa y la estrecha y pedregosa franja de arena que se extendía a lo largo del mar, revuelto y turbio.
—¡Qué olas tan grandes...! —dijo Thomas Buddenbrook—. ¡Cómo vienen y rompen, vienen y rompen, una tras otra, sin fin, sin sentido, tristes y erráticas! Y, sin embargo, nos tranquilizan y nos consuelan como sólo lo hace lo más sencillo y necesario. He llegado a amar el mar cada vez más... Quizás en otra época me atrajeran más las montañas, porque estaban lejos de aquí. Ahora ya no querría ir por nada del mundo. Creo que sentiría miedo y vergüenza. Allí es todo demasiado azaroso, demasiado irregular, demasiado diverso...; sin duda, me sentiría demasiado inferior. ¿Qué tipo de personas son las que prefieren la monotonía del mar? Yo creo que son las que han pasado mucho tiempo observando su laberinto interior con demasiada profundidad, de modo que lo único que buscan, al menos en el exterior que les rodea, es una cosa: uniformidad... Hay una primera diferencia, menor: en las montañas, uno va trepando y subiendo, mientras que, junto al mar, uno permanece quieto, descansando en la arena. Sin embargo, conozco la mirada con la que se rinden honores a lo uno y a lo otro. Los ojos que vuelan de cumbre en cumbre son ojos seguros, rebeldes, felices, llenos de ganas de vivir, de firmeza y valor para enfrentarse a lo que se ponga por delante; en cambio, ante la inmensidad del mar que mece sus olas con este fatalismo místico e hipnótico, hay una mirada nublada, consciente y sin esperanza que alguna vez vislumbró las profundidades del triste caos de la existencia... Salud o enfermedad: ahí está la diferencia importante. Uno escala con arrojo la maravillosa diversidad de aquellos parajes llenos de aristas, cumbres y precipicios para poner a prueba su fuerza vital cuando todavía no se ha consumido nada de ella. Pero prefiere descansar en la infinita uniformidad del mundo exterior cuando está cansado de la absurda maraña del interior.
La señora Permaneder, intimidada e incómodamente conmovida, guardó silencio; calló como calla la gente sencilla cuando, en medio de una conversación de sociedad, alguien dice muy serio una gran verdad. «¡Esas cosas no se dicen!», pensó, mirando con firmeza hacia la lejanía del horizonte para no encontrarse con los ojos de su hermano. Y, como si le pidiera disculpas por no poder evitar avergonzarse de él en aquel silencio, le cogió un brazo para rodearlo con los suyos.

Li anteriormente:
O Cisne Negro (1954)
Tônio Kroeger (1903)
A Morte em Veneza (1912)

25 de marzo de 2020

The Goblin Reservation

Clifford D. Simak
The Goblin Reservation (1968)

Não me recordo qual o segundo livro de FC que li; o primeiro nunca o esqueci: Mundos Simultâneos, a tradução portuguesa de Ring Around the Sun, de Clifford D. Simak. Foi uma autêntica surpresa, abrindo-me as portas para este sub-género que me acompanhou durante muito tempo. Desde então, dos fins dos 70s até 1990, li outras treze obras do mesmo autor. The Goblin Reservation é o reencontro com o escritor, trinta anos depois.
O livro foi editado em Portugal, na Colecção Argonauta, sob o título O Tempo dos Duendes, mas o texto não prima pela fidelidade. Sendo uma colecção de baixo orçamento, limitada por um número mais ou menos fixo de páginas por volume, o editor não se coibia em desbastar o texto até permitir encaixotar a obra no espaço disponível — e no caso presente, fê-lo profusamente. Se a escolha dos autores e o grafismo da capa eram, geralmente, criteriosos, já a edição deixava muito a desejar. Comparando a tradução portuguesa com o original verifica-se uma contínua supressão de frases. Nada do que falta parece obstar ao entendimento da narrativa, mas, a meio caminho de uma versão condensada para leitores apressados, há uma perda considerável de pormenor e de profundidade — para nem falar no desrespeito ao trabalho do autor.
Passado numa Terra em que as viagens no tempo são triviais e as viagens no espaço instantâneas, The Goblin Reservation conta a história de Peter Maxwell, um professor universitário que não conseguiu chegar ao seu planeta de destino e, no regresso, descobre que um seu duplicado chegara à Terra duas semanas antes, após uma viagem sem sobressaltos e, entretanto, morrera num acidente. Peter Maxwell tinha permanecido naquilo que descreveu como o “planeta de cristal”, um imenso repositório de conhecimento vindo de um universo anterior ao presente, que é oferecido como moeda de troca por um misterioso objecto, exposto no museu do Tempo, resistente a toda a tentativa de análise, conhecido como o Artefacto. Esse gigantesco arquivo também é disputado por uns estranhos seres extraterrestres, os Wheelers, que se propõem à compra do Artefacto. A história de The Goblin Reservation está cheia de meandros e situações inesperadas, aligeirada pelas personagens e pelo tom dos diálogos, incluindo seres mais relacionados com o sobrenatural ou com o lendário do que com a FC clássica (o que não é inédito na bibliografia do autor, recorde-se os excelentes A Irmandade do Talismã ou Onde Mora o Mal), acabando por integrá-los depois num enquadramento racionalizante de “plausibilidade”, para não defraudar os leitores. É um livro com originalidade e, de certa forma, refrescante; mas, na minha opinião, Clifford D. Simak tem outros que são melhores.

She shook her head. “No,” she said. “No, it’s not any good to ask. I have no right to ask. I’ll simply have to tell you and trust to your discretion. And I’m pretty sure it’s true. Time has been made an offer for the Artifact.”
Silence reverberated in the room as the other three sat motionless, scarcely breathing. She looked from one to the other of them, not quite understanding.
Finally Ghost stirred slightly and there was a rustling in the silence of the room, as if his white sheet had been an actual sheet that rustled when he moved.
“You do not comprehend,” he said, “the attachment that we three hold to the Artifact.”
“You struck us in a heap,” said Oop.
“The Artifact,” said Maxwell softly. “The Artifact, the one great mystery, the one thing in the world that has baffled everyone...”
“A funny stone,” said Oop.
“Not a stone,” said Ghost.
“Then, perhaps,” said Carol, “you’ll tell me what it is.”
And that was the one thing, Maxwell told himself, that neither Ghost nor any one else could do. Discovered ten years or so ago by Time investigators on a hilltop in the Jurassic Age, it had been brought back to the present at a great expenditure of funds and ingenuity. Its weight had demanded energy far beyond anything so far encountered to kick it forward into time, an energy requirement which had made necessary the projection backward into time of a portable nuclear generator, transported in many pieces and assembled on the site. And then the further task of bringing back the generator, since nothing of that sort, as a matter of simple ethics, could be abandoned in the past—even in the past of the far Jurassic.
“I cannot tell you,” said Ghost. “There is no one who can tell you.”
Ghost was right. No one had been able to make any sense of it at all. A massive block of some sort of material that now appeared to be neither stone nor metal, although at one time it had been thought to be a stone, and later on, a metal, it had defied all investigation. Six feet long, four feet on each side, it was a mass of blackness that absorbed no energy and emitted none, that bounced all light and other radiation from its surface, that could not be cut or dented, stopping a laser beam as neatly as if the beam had not existed. There was nothing that could scratch it, nothing that could probe it—it gave up no information of any sort at all. It rested on its raised base in the forecourt of Time Museum, the one thing in the world about which no one could even make a valid guess.

Li anteriormente:
Mundos Sem Fim (1955-56)
A Estrada da Eternidade (1986)
Onde Mora o Mal (1982)