7 de xaneiro de 2017

Caminhos Cruzados

Érico Veríssimo
Caminhos Cruzados (1935)

Caminhos Cruzados é o segundo romance de Érico Veríssimo. Dividido em cinco partes, cada uma com o nome dos dias da semana de sábado a quarta-feira, subdivide-se depois em capítulos breves que acompanham a vida diária e as pequenas peripécias que sucedem aos seus protagonistas. Deste modo, acompanhamos gente e famílias de todos os estratos sociais, como o professor Clarimundo, que um dia há-de escrever um livro a descrever a verdade das coisas mas, por enquanto, anda a magicar no que será o prefácio; Chinita, a filha do novo-rico coronel Pedrosa, com a cabeça à roda numa vida fútil onde se tenta comparar ao que julga ser a vida das estrelas de Hollywood; Teotônio Leitão Leiria, um burguês abastado de modos ridículos; a desgraça de Maximiliano, tuberculoso entre a vida e a morte; João Benévolo, amante de leituras e de ilusões, caído no desemprego e sem dinheiro, vê a miséria montar o cerco à sua família. Entre tanta gente, destacam-se duas mulheres que, pela sua força interior, escapam a este descritivo quase caricatural: Fernanda, por oposição ao apagamento de Noel, seu amigo de infância, e D. Maria Luísa, a mulher do coronel Pedrosa, que cedo se apercebe que o dinheiro não traz a felicidade. Na impessoalidade da grande cidade, por vezes, os caminhos destas personagens cruzam-se, as decisões de uns afectam outros, justificando o título.

Mas um dia Zé Maria sonhou que a casa do coletor tinha prendido fogo e que o Madruga havia morrido queimado. Levantou-se, impressionado. Estava-se em véspera de Natal, a Loteria do Estado anunciava uma extração de dois mil contos. Zé Maria foi olhar a casa do coletor. Tinha o número 1063. Tomou uma resolução heróica. Uma vez na vida e outra na morte não fazia mal arriscar... Desgraça pouca é bobagem. Juntou a féria de três dias e foi à Agência de Loteria do Bianchi.
— O 1063 não tem... — disse o italiano.
Zé Maria ficou amolado.
— Encomende. Pago telegrama, pago tudo.
Estava nervoso. O Bianchi telegrafou. A resposta veio. O 1063 já estava vendido, mas o 3601 estava livre. Servia?
— Servia! Mande buscar urgente.
Em casa ninguém sabia de nada. O 3601 veio. Zé Maria andava preocupado. Algumas firmas ameaçavam protestar duplicatas vencidas e não pagas. O negócio estava meio parado.
Um dia Zé Maria não agüentou aquela coisa esquisita que se lhe avolumava no peito, aquela angústia, aquele peso. Contou tudo à mulher. Tinha comprado um bilhete!
— Um bilhete inteiro? Inteiro?
D. Maria Luísa levou as mãos à cabeça. Zé Maria estava aniquilado.
— Quanto custou?
— Trezentos...
D. Maria Luísa enxergava, via com nitidez os trezentos mil-réis diante dos olhos. Sentiu uma tontura. Foi para o quarto e chorou toda a tarde.
Na véspera de Natal ao anoitecer estralaram foguetes lá para as bandas da praça.
Zé Maria apareceu à porta da loja.
— É na agência do Bianchi — disse uma voz.
Assomavam cabeças às janelas. Corria gente para a rua. Contra o céu claro faiscavam os foguetes que explodiam, e as pequenas nuvens de fumaça ficavam no ar por alguns instantes...
O coração de Zé Maria começou a bater com mais força. Enfiou o chapéu na cabeça e saiu.
— Deve ser a bruta! — gritou-lhe alguém.
Zé Maria caminhava como um ébrio, os olhos turvos, a cabeça tão tonta que nem podia pensar. A uma esquina encontrou o Madruga.
— Onde vais com tanta pressa, homem?
Zé Maria afastou-o com a mão.
— Me deixa.
Madruga ficou rindo, o palito tremeu-lhe nos lábios.
— Pensas que tiraste a sorte grande, animal?
Na frente da agência do italiano Bianchi havia gente amontoada, procurando ler o número escrito no quadro-negro. Bianchi, rindo com toda a cara vermelha e enrugada, emergiu da maçaroca humana e correu para Zé Maria, de braços abertos:
— Felizardo! Felizardo! A bruta!
Zé Maria negava-se a compreender, a acreditar. Era demais. Aquilo não lhe podia acontecer. Ah! Não podia.
— Mas é a bruta. Dois mil contos! Eu mandei na loja lhe avisar!
Diante dos olhos do coronel tudo dançava: o italiano, as árvores, as pessoas... Os foguetes continuavam a subir para o céu e estouravam lá em cima, provocando ecos atrás da igreja. Agora em torno de Zé Maria havia muitas pessoas, conhecidas umas, desconhecidas outras. Ele tinha vontade de gritar. Sons confusos lhe chegavam aos ouvidos: — Parabéns! Felizardo! Qual foi o número? Nasceu empelicado! Sim senhor!
Depois que se livrou dos abraços da primeira hora, examinando com os próprios olhos o telegrama que trouxera o resultado da extração; depois que bebeu um copo d'água fria é que Zé Maria começou a se habituar à realidade maravilhosa. Quando serenou, o seu primeiro pensamento foi para o amigo: “Eu só quero é ver a cara do Madruga.” E viu. Madruga chegou, fingindo indiferença.
— Ouvi dizer que tiraste a sorte grande.
O sorriso largo de Zé Maria era uma confirmação. Madruga segurou o palito, fleumático, fez uma careta de dúvida e disse:
— Não sei se te felicito... Bem diz o ditado que a fortuna é cega. Deus às vezes dá osso pra cachorro sem dente. Dentro de dois anos não tens mais um miserável níquel. Por falar nisto, me empresta vinte mil-réis.
Zé Maria tirou do bolso uma cédula de cinqüenta.
— Leva cinqüenta! Estou louco da vida.

Li anteriormente:
Clarissa (1933)
Olhai os Lírios do Campo (1938)
O Tempo e o Vento, vol. III – O Arquipélago (1962)

Ningún comentario:

Publicar un comentario