3 de agosto de 2015

Count Zero


William Gibson
Count Zero (1986)

Quando o Neuromancer foi editado despoletou um imenso burburinho; William Gibson era anunciado como uma nova estrela da literatura, e passou-se por cima do preconceito de ter publicado um livro de FC. Não o li então; deixei assentar a poeira e li-o há cinco anos, quando o autor possuía já uma obra de certa dimensão e continuidade. Chegou agora a vez de Count Zero, cujas peripécias têm por fundo a violenta disputa industrial de uma nova tecnologia, o biochip, enquanto o multimilionário Virek parte em busca da imortalidade, por interposta pessoa. A narrativa desdobra-se em três vectores simultâneos, centrados nas personagens de Turner (um mercenário ao serviço de uma poderosa multinacional), Bobby Newmark (um hacker novato mas com sonhos ambiciosos, auto-denominado “Count Zero”) e Marly Krushkhova (uma parisiense, obscura negociante de arte, que ganha um contrato astronómico ao serviço de Virek), mas estas tramas mal chegam a se interceptar (aliás, Marly não converge de todo).
Criado numa época em que a internet mal dava os primeiros passos, reencontra-se aqui toda a ambiência do Neuromancer — passa-se uns anos depois, com algumas referências a um par de personagens desse romance — tal como o futuro era imaginado em meados da década de 80: o ciberespaço e a experiência de imersão numa realidade virtual; o Japão ascendido a uma posição dominante a nível mundial (o contemporâneo Blade Runner partilhava desta ideia), com as multinacionais da época tornadas em enormes potentados globais e o iene a fazer as vezes do dólar. Menciona-se também a Alemanha Ocidental (em 1986 o Muro de Berlim parecia que ia durar para sempre) e o fax é de uso óbvio — então em processo de massificação... quando hoje se tornou numa peça de museu!
A escrita de Gibson é um tanto angulosa e difusa, e tende a deixar o leitor para trás — nesse particular faz-me lembrar o Philip K. Dick mais tardio. Depois de ter lido o Neuromancer em pt-br, senti-me um tanto intimidado em abordar este Count Zero no original. Há uma catadupa de neologismos e palavras inventadas pelo autor que me dificultariam a leitura e optei, novamente, pela versão em português do Brasil. Infelizmente não foi a decisão correcta.
Costumo dizer, um pouco na brincadeira, que o “brasileiro” é a língua estrangeira que melhor entendo. Depois deste livro já não tenho a certeza. Para além de ter achado a tradução atabalhoada, com a manutenção desnecessária de demasiadas palavras em inglês (eu, que normalmente me queixo do contrário, porque gosto de perceber o texto original “atrás” da tradução), o recurso a um vocabulário coloquial (ou gíria, talvez), empobrece fortemente o texto, na minha opinião. Fora as frequentes vezes em que pura e simplesmente não consegui entender, e me vi obrigado a pesquisar o original para tirar dúvidas. Neste confronto, tornaram-se evidentes as más opções de tradução, não no fio narrativo, mas na escolha da sintaxe. Um nomeado para os prémios Hugo e Nebula merecia melhor; quando voltar a ler William Gibson vou ter isto em consideração...

Os sonhos de computador continham uma vertigem especial. Turner se deitou em uma placa virgem de espuma verde, no dormitório improvisado, e conectou o dossiê de Mitchell. Começou devagar: teve tempo de fechar os olhos.
Dez segundos depois, os olhos estavam abertos. Agarrou a espuma verde e lutou contra a náusea. Fechou os olhos de novo... Mais uma vez, começou aos poucos, um fluxo bruxuleante e não linear de fatos e dados sensoriais, um tipo de narrativa transmitida em planos interrompidos e justaposições surreais. Era um pouco como andar em uma montanha-russa que aleatoriamente entrasse e saísse da existência, em intervalos impossivelmente rápidos, mudando de altitude, ângulo e direção a cada pulso de inexistência. Exceto que os deslocamentos não tinham nada a ver com qualquer orientação física, mas sim com alternâncias instantâneas no sistema de símbolos e paradigmas. Aqueles dados nunca se destinaram a acesso humano.
Com os olhos abertos, tirou o objeto do soquete e segurou-o na mão, lisa de suor. Era como acordar de um pesadelo. Não um de horror, no qual os temores internos assumiam formas simples e terríveis, mas o tipo de sonho, infinitamente mais perturbador, em que tudo é perfeita e terrivelmente normal... e em que tudo está completamente errado.

Li anteriormente:
Neuromancer (1984)

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