22 de marzo de 2014

Cala a Minha Boca Com a Tua

Pedro Paixão
A Noiva Judia (1992)
Viver Todos os Dias Cansa (1995)
Nos Teus Braços Morreríamos (1998)
Cala a Minha Boca Com a Tua (2002)


De Pedro Paixão li estes quatro livros de rajada, o que é mais fácil do que possa parecer, pois cada um deles se lê em três horas, ou menos. Os três primeiros reli-os, doze anos depois, e, mais do que antes, os seus curtos textos pareceram-me o equivalente literário do que na astronomia se designa um buraco negro: um ponto de massa infinita e forte atracção gravitacional, do qual nem a luz escapa. O mais recente do lote li-o pela primeira vez, e é um pouco diferente: em vez de um alinhamento de dezenas de pequenos textos, agrupa cinco contos. Nas teorias astronómicas (para continuar com a analogia) também se fala da possibilidade de evaporação de um buraco negro, e aqui esse negrume esmagador está aqui mais diluído. O primeiro excerto é de Nos Teus Braços Morreríamos; o segundo de Cala a Minha Boca Com a Tua.

Já andei meses de cabeça perdida. Já houve um tempo em que me feria fundo a beleza de um corpo. Passei muitas noites sem querer dormir e muitos dias sem querer ver o que estava à minha frente. Vivi com mulheres. Traí e fui traído. Tive um pai e uma mãe como toda a gente, que morreram muito longe de mim. Conheci situações adversas mais vezes do que o bom sucesso. Estive doente e curei-me. Desejei viver e morrer com intensidades tamanhas que certamente por isso se anularam. Conheci o entusiasmo que abate as paredes e o desespero que tudo afoga no escuro. Tudo isso acabou. Tudo isso foi há muito tempo, numa outra espécie de vida. Hoje estou morto. Ninguém espera de mim o que quer que seja, nem saberia encontrar o lugar onde estou. E eu não tenho outra ambição que não seja a de prolongar por algum tempo esta situação privilegiada em que se espreita para o rio da vida com interesse e lucidez acrescidos porque já não se é parte interessada. Nasci em 1923 e ainda não fui enterrado.

O pai tem muitas perguntas para fazer sobre esta cidade enquanto o filho de treze anos, mais alto que todos nós, permanece calado com os olhos abertos por detrás de uns redondos óculos. Fico a saber que nada sei sobre esta cidade e que o senhor simpático viaja civilizadamente com o filho de comboio pelo nosso país. Vive em Nuremberga onde é dono de uma pequena agência imobiliária e alimenta a esperança de se tornar pintor para sempre. Nasceu a meio da guerra que destruiu a Europa e só lê autores franceses, de preferência. Quer saber de que vivemos. Digo-lhe que de dinheiro emprestado. Quer saber o que fazemos. Cito-lhe que depois da Índia descoberta ficámos sem emprego. Quer saber porque somos tão melancólicos e eu insisto que não, que no fundo até somos alegres, que a vida é que é triste e não temos culpa disso. Pergunta-me por uma revolução de rosas. Digo-lhe que se antes sentia nojo agora tenho muitas vezes náusea. Trocamos cartões e prometemos rever-nos no infinito.

Ningún comentario:

Publicar un comentario