15 de marzo de 2018

Contos e Lendas


Rebelo da Silva
Contos e Lendas (1873)
Contos e Lendas, vol. II (1908)

Luís Augusto Rebelo da Silva é um nome importante na literatura portuguesa do séc. XIX; no entanto, não consegui assegurar-me do ano de publicação deste livro em concreto. A Introdução, onde se atribui a autoria deste livro a um humilde e erudito prior de província que fez questão de ficar no anonimato, está datada de Setembro de 1866. A edição mais antiga que encontrei é de 1873, dois anos após a morte do autor. Uma outra versão pertence às “Obras Completas”, reunidas em pelo menos 41 volumes, numa 2.ª edição datada de 1908, onde os Contos e Lendas ocupam os tomos 14 e 15; o tomo 14 corresponde à edição de 1873 e contém A Torre de Caim, O Castelo de Almourol, A Camisa do Noivado e Última Corrida de Touros em Salvaterra, enquanto o tomo 15 inclui os incompletos A Tomada de Ceuta e A Pena de Talião. Assim, é legítimo supor que a primeira edição deverá ter aparecido entre 1866 e 1873. Contudo, Última Corrida de Touros em Salvaterra, já se publicara em 1848.
Todas estas narrativas decorrem em contexto histórico e nelas se registam, como o título levaria a supor, acontecimentos prodigiosos e sobrenaturais – sobretudo em A Torre de Caim, passada no séc. XI, que trata de uma vingança entre famílias nobres, levada além da morte, e tem por fundo uma história de amor. O Castelo de Almourol, que, segundo uma nota do editor, ficou incompleto devido à morte prematura do escritor, decorre no séc. XVII em plena Guerra da Restauração, e conta uma divertida história de dois feitores desonestos que pretendem, por truques e mentiras, desenvencilhar-se dos legítimos proprietários – uma família da corte que decidiu mudar-se temporariamente para a sua propriedade (o primeiro excerto abaixo citado, na ortografia original, pertence a este conto). A Camisa do Noivado passa-se no séc. XIV, num povoado próximo de Miranda; um fidalgo malévolo e tirânico pretende arrebatar a bela noiva de um jovem arqueiro, e será o próprio rei D. Pedro I, O Justiceiro, a resolver providencialmente a contenda por suas mãos. Última Corrida de Touros em Salvaterra é certamente a obra mais conhecida de Rebelo da Silva; passada no reinado de D. José, descreve a festa brava transformada em tragédia, com a morte de um cavaleiro nobre na arena, e como o Marquês do Pombal influencia o soberano, para que ponha termo às corridas reais, pois a morte destes valorosos súbditos impede-os de dar o seu contributo às guerras que se avizinham.
A Tomada de Ceuta, foi parcialmente publicado em 1840 e, novamente, em 1856 em folhetins no jornal A Pátria; a suspensão do jornal interrompeu o prosseguimento da obra, que, nos cinco capítulos existentes, esboça um ambicioso romance histórico sobre o tema que lhe dá o título (é daqui o segundo trecho). A Pena de Talião, que ficou apenas pela Introdução, publicada no Panorama de 24 de Novembro de 1855, esclarece o método criativo e fundamenta as opções estéticas do escritor, além de apresentar um esboço da estrutura desta novela, destinada a ser o complemento moral do romance Ódio Velho não Cansa e, ao mesmo tempo, o retocar de outra novela, Rausso por Homizio, duas obras de juventude, consideradas imperfeitas pelo autor.

Ao mesmo tempo as hostilidades diabolicas não eram menos activas e violentas nas camaras dos outros hospedes. Romão Pires, apenas se deitára, e escondera a cabeça debaixo da roupa, com premeditação pouco em harmonia com os brios de suas falladas campanhas, sentio apagar-se-lhe a luz, e puxarem-lhe pelos pés o magro e aprumado corpo até o estatelarem de pancada e sem dó nas taboas do sobrado. O grito de mêdo e de dor, que soltára estremunhado, teve em resposta um côro de risadas em falsete. Brizida de Souza acordou espavorida ao frio gelado de um verdadeiro regador de agua que lhe entornavam sobre a cabeça, e saltando por a casa em roupas menores, e com a boca escancarada, para bradar, era comida no ar por mãos pouco caridosas e nada leves, que de empurrão em empurrão a levaram aos tombos até ao corredor, aonde veiu encontrar em anagua o honrado escudeiro, tiritando de susto e com uma das mãos em cada face esbofeteada pelos duendes, com vigor que bem accusava uma força sobrenatural. D. Maria, encolhida e semi-morta de pavor, não padecera senão o terror de ouvir estalar ao pé do leito gargalhadas dissonantes, e arrastar ferros.
No quarto de D. Pedro, os trasgos haviam sido menos felizes, porque tinham chegado mais atrazados. Dotado de animo varonil e reflectido, sereno em presença do perigo, e pouco disposto a acreditar na intervenção dos poderes infernaes, o mancebo, resolvera velar a noute sem se despir, e com a espada nua ao lado, tinha-se entregado á leitura de um livro novo, que em breve lhe absorveu a attenção. Feriu-lhe de repente o ouvido a matinada das investidas no corredor e nos aposentos proximos. Apagando a luz, e empunhando a espada, aguardou silencioso.
A sua porta abriu-se de feito, pouco depois, e pareceu-lhe aperceber dous vultos na escuridão. Deixou-os adiantar, seguiu-os, e quando um se debruçava sobre o leito vasio, e o outro, assoprando n'um buzio tirava d'elle sons roucos e medonhos, caiu ás pranchadas sobre o musico do Averno, ao qual o instrumento escapou dos dedos, e que, amedrontado, principiava a revolver-se pela casa, gritando como um simples mortal derreado por uma sova. O outro phantasma volveu logo em auxilio do agredido, mas uma cutilada de D. Pedro, aparada no braço ao que pareceu, deitou-o pela porta fóra como um vendaval, em quanto o companheiro tomava o mesmo caminho, mas de rastos e gemendo.
D. Pedro, decorridos instantes, feriu lume, accendeu a vela do castiçal e a candeia, e examinou attentamente o campo de batalha. Jaziam no chão um buzio dos usados pelos ranchos da apanha da azeitona, um lençol com lagrimas de tinta encarnada, e uma caveira de papelão pintada de amarello.
O mancebo sorriu-se. Aquelles despojos eram o corpo de delicto e ao mesmo tempo documento vivo da conspiração tramada. Algumas gôtas de sangue, caidas no pavimento desde metade da casa até á porta, provaram-lhe que um dos actores do drama nocturno retirara ferido e assignalado. D. Pedro pegou no castiçal, e seguindo o rasto de sangue pelo corredor, notou que parava no topo, aonde só existia uma parede grossa, sem nenhuma saida apparente. Informado do que desejava verificar, voltou atraz, e encaminhou-se ao camarim de Romão Pires. Á porta viu duas figuras brancas ajoelhadas. Deteve-se um pouco até se affirmar. A velha aia e o dorido escudeiro, ambos de joelhos, e ambos transidos de medo e de frio, esgotavam um defronte do outro todo o vocabulario de rezas e de interjeições atribuladas, sem se atreverem a volver aos aposentos. D. Pedro, não podendo suster o riso, fallou-lhes, animou-os, e, mandando-os acabar de vestir, passou a visitar a camara de Fr. João.
O frade ainda jazia na mesma posição. Conservava-se quasi exanime na ampla cadeira. Vendo entrar o sobrinho com o castiçal em uma das mãos e a espada nua debaixo do braço, estremeceu, e esbugalhou os olhos, mas não se moveu.
D. Pedro aproximou-se da mesa, accendeu a outra vela, e sem proferir palavra examinou cuidadosamente o aposento. Nenhum indicio! O inimigo triumphante não deixára despojos. Terminado o exame, poz o castiçal em cima do velador, collocou a espada ao pé do castiçal, e, volvendo para junto da cadeira, d'onde o tio, como paralysado, observava tudo silencioso, disse-lhe:
—Mas o que foi isto?!..
[...]
Franzindo o pesado reposteiro, que vedava a entrada, quem, penetrando, podesse ler n'aquelle momento o segredo, que assim fazia estremecer tantos peitos generosos, sairia convencido de que a occasião é tudo, quasi, nas acções humanas, ainda nas maiores; e que, uma palavra, ou um lance inopinado, bastam ás vezes para decidir da sorte dos grandes homens, e dos poderosos impérios.
Um só de menos, na sala do conselho da Batalha, e Salat Ben Salat não veria talvez a sua velhice affrontada, fechando tranquillamente os olhos no soberbo castello, d'onde contemplava as ondas, que se debruçavam como captivas, para banhar os pés á sua formosa cidade.
Uma voz de prudencia, que falasse, e no impeto do primeiro e cego arrojo, Portugal, abraçando-se além do estreito com a orgulhosa Amazona do Mahgreb, apercebida para a lucta, talvez desfallecesse no encontro, como seculo e meio depois se prostrou com o seu rei nos areaes de Alcácer!
A hora dos revezes não tinha soado ainda; Deus mandou os dias de esplendor adeante dos dias de lagrimas e de lucto!
Ceuta estava fadada para se dar começo n'ella aos bellos rasgos da mais pura e justa das nossas cruzadas; e rodeado de seus heróicos filhos, flor e esperança da coroa popular, cingida pela victoria, D. João I era o rei apontado pela Providencia para levantar nas praias d'Africa a luva, que Tarik arremessara contra as Hespanhas, quando ousou estampar o sello da servidão na formosura profanada das suas opulentas cidades.
Do alto dos montes africanos, subjugados, é que o Infante D. Henrique alongou depois a vista e a idéa pelas aguas tempestuosas e nunca navegadas; e foi alli, de certo, que a visão gloriosa do futuro imperio, promettido a seus netos pela constancia do descobridor, lhe appareceu no silencio profundo das horas de acceso imaginar.
O sangue espargido em Ceuta era a semente; o oriente devassado serviu de premio.
Depois, abertos os caminhos, e consummados os desígnios do Céu, anoiteceu para nós, e os annos de declinação precipitaram-se rápidos e successivos.
Quando o reino, com os prantos ainda por enxugar, viu alçar nas torres e galeões do Tejo os leões de Castella, havia muito que em Arzilla se haviam arreado as quinas levantadas por Affonso V!
A agonia principiou alli; Filippe II o que fez só foi tornal-a menos lenta, e mais dolorosa!

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