28 de decembro de 2019

O Ano do Cometa

John Christopher
O Ano do Cometa (1955)

Esta foi a primeira vez que me cruzei com John Christopher; inglês de nascimento, Sam Youd utilizou cerca de uma dezena de pseudónimos diferentes, consoante o teor da sua escrita, todos eles de maior entoação britânica, não obstante o seu verdadeiro apelido ser britânico de gema, embora possa parecer o contrário. Foi uma bolsa da Fundação Rockefeller que lhe permitiu dar início à sua carreira literária, em 1949, com The Winter Swan, sob o nome Christopher Youd; utilizou o nome John Christopher a partir de 1951, ano em que iniciou a publicação de contos de FC, e Year of the Comet foi a sua primeira novela dentro do género, dando início a um percurso bem sucedido que só terminou já no início deste século XXI, ofuscando, pode afirmar-se, todos os seus outros heterónimos.
O Ano do Cometa passa-se num futuro onde, após uma guerra, os diversos grupos industriais — Química, Agricultura, Telecomunicações, Astronáutica, Energia Atómica, etc. — assumiram o poder, com um novo modelo social designado “sistema de gestão”; a única excepção é Israel, fiel ao velho capitalismo. O protagonista, Charles Grayner, um investigador pertencente à IQR (Indústrias Químicas Reunidas), é nomeado para um laboratório onde vai continuar um trabalho acerca das propriedades energéticas do diamante, devido ao desaparecimento e aparente morte do seu antecessor. A partir daqui entronca um enredo vagamente policial, com outras mortes ou desaparecimentos em circunstâncias invulgares, que incluem Sarah Cohn, a assistente israelita de Grayner, no início de uma promissora relação amorosa. O conhecimento de Charles Grayner é depois disputado pelos vários grupos industriais, que o raptam discretamente em sucessão rápida, ao mesmo tempo que este tinha iniciado uma busca por Sarah Cohn, com a colaboração de um amigo, Hiram Dinkuhl, autor do último programa cultural ainda existente na TV, a personagem mais inconformista de todo o livro. Neste tempo narrativo aproxima-se da Terra um cometa, o que despoleta a existência de uma seita religiosa apocalíptica; no entanto, este facto tem menos importância no desenrolar do livro do que o título poderia indicar, à parte um dos capítulos finais, quando Grayner e Dinkuhl tentam usar a seita como camuflagem da sua fuga, e a verdadeira natureza do culto nos é revelada.

Dinkuhl encheu o copo.
— Os conselhos podem esperar. Não devem ser de molde a exigir uma atenção urgente. De qualquer forma, devem poder esperar meia hora. Porque é que eu pretendo destruir esta sociedade mundial paternalista no seio da qual vivemos? Porquê afinal?
Charles teve de se conformar.
— Porque o fim está à vista — o fim do FK?
— Em parte, em parte. Mas há mais. Diga-me qual é o aniversário que se vai celebrar dentro de dois anos?
— Não sei. Devia saber?
— É o aniversário da Guerra. O que é que você sabe acerca da Guerra? Acerca da forma como esta sociedade de hoje passou a existir?! Vou fazer-lhe outra pergunta. O Professor Cohn ensinava História em Berkeley, uma das raras instituições académicas que ensinam aquela disciplina. Quantos alunos tinha ele?
— Antes de desaparecer? Dois.
— Surpreende-me. Sim, dois. Duvido de que haja, em todo o continente norte-americano, uma dezena de alunos que leiam História. Embora não possa esperar que você tenha consciência disso, esse facto representa — sob o ponto de vista histórico — um estado de coisas extraordinário. Houve outros períodos de decadência em que as pessoas deturparam e interpretaram mal a história das suas próprias origens; este é o primeiro que consegue ignorá-la inteiramente.
— Decadência?
Dinkuhl suspirou.
[…]
— E nesse aspecto — disse Dinkuhl — você mostra-se como um verdadeiro filho da sua época. Se vai avaliar esse tipo de empreendimentos em termos de lucros e perdas, isso quer dizer que já falhou antes de começar. Não, isso é a decadência. Mas claro que esse está longe de ser o único sintoma. Veja as artes. A verdade é que nos últimos dias do capitalismo não produziram nada que valesse a pena herdar, mas pelo menos produziram alguma coisa. E hoje em dia nem sequer temos a graça salvadora da discriminação que nos diga que aquilo que produzem não vale a pena ser herdado. Que é que você ouve em Doçura e Conforto Brilhante? Rhapsody in Blue... Danúbio Azul... Chatta-nooga Chu-Chu... ou, se o seu gosto está com as alturas rarefeitas da Liga Vermelha — Elgar, Stravisnky, Sibelius e Gilbert e Sullivan. Tentam tudo por todos os meios e mesmo assim repetem-se. A sua adaptação do Concerto para Violino de Sibelius para harmónica bocal — essa espécie de loucura esteve muito em voga quando eu era rapaz.
«As pessoas continuam a viver no meio do mobiliário neo-escandinavo dos meados do século XX e os poucos pintores que existem seguem como escravos as diversas escolas do século XX — neo-impressionistas, cubistas, fauvistas — temo-los a todos. O grupo Tempos Livres continua a apresentar blocos de pedra com buracos aos milhares.
— Talvez seja essa a forma certa de arte.
— Não existem formas certas de arte. E mesmo que as houvesse certamente não seriam essas manifestações prosaicas e falhas de imaginação. A decadência implica, em primeiro lugar, uma perda de energia criadora e em última análise uma perda de gosto. Chegamos ao fundo dos fundos.


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