23 de xuño de 2025
O Delfim
José Cardoso Pires
O Delfim (1968)
O Delfim transporta-nos à Gafeira, uma localidade imaginária cujo nome faz lembrar a Gafanha, destino de caçadores, onde o escritor-narrador regressa, passado um ano da sua última estadia. Do local destaca a grande praça onde em tempos se fazia uma feira e, nos arredores, a casa senhorial dos Palma Bravo e uma lagoa, território de caça, não muito distante da linha costeira. E inteira-se de uma tragédia, entretanto acontecida, que resultou na morte de Domingos e Maria das Mercês, o criado e a mulher de Tomás Manuel, o último dos Palma Bravo, que se encontra desaparecido. E, a partir da pensão onde está instalado, o escritor-narrador, que frequentou a casa dos Palma Bravo na estadia anterior, vai construindo uma história que é dada pelas várias personagens que faz desfilar. Mas, talvez mais importante do que a história, é a maneira como a escreve, como as personagens encadeiam pensamentos e frases, pelo que O Delfim resulta, acima de tudo, num exercício de estilo.
Pela porta que dá para o pátio entram insectos nocturnos. De tempos a tempos, um pio de mocho — mau sinal para os amantes em fuga. Enfim, não nos precipitemos e bebamos pela justiça. O tio Gaspar (preveniu-me Tomás Manuel) não era indivíduo para deixar que lhe mijassem nas botas. Mais:
«Ninguém lhe podia ver sequer os olhos. Quando os abria eram fogo.»
Tornamos a encher os copos, e então verifico que o fidalgo já partiu, herdade fora, conduzindo pela arreata o cavalo de estimação. Tinha-lhe mandado pôr a sela branca, de camurça, estribos lavrados e arreios de fivela de prata. Pardala, a galga de mais finos ventos, leva a coleira de cerimónia. Em procissão, amo, animais e servo vão caminhando, caminhando, até que fazem alto à beira de um fosso que servia de estrema à herdade. Silêncio sepulcral. Eu e Tomás Manuel ficamos de copos suspensos.
«O tio Gaspar», torna a segredar o meu companheiro, «nunca dava contas a ninguém das decisões que tomava.»
Compreendo, compreendo. Na verdade, o velho continua sem uma palavra, está fixo numa direcção qualquer para lá da fronteira dos seus domínios. Rezará?, pergunto. Medita? «Chut.» Tomás Manuel chama-me a atenção para a mão direita do falecido tio Gaspar. Daquele vulto rígido, obstinado, desponta lentamente um revólver engatilhado. Durante algum tempo a mão suspende-se, depois, sempre com a mesma lentidão, aproxima-se da Pardala que o criado segura pela trela e abate-a com um tiro no ouvido.
Viro a cara para o lado: «Irra...»
«Momento», avisa Tomás Manuel. «Ainda não é tudo.»
Não é, há mais. O tio Gaspar dirige-se agora ao cavalo, hesita. Os dedos tremem-lhe, ficaram de repente mais velhos e ressequidos. Ouve-se um disparo, outro e outro. Tem de consumir um carregador inteiro para pôr fim ao animal. O belo e leal Cadete jaz no meio dum balseiro, de patas para o ar e olhos espantados. Acabou-se. Eu e o meu companheiro bebemos uma golada de alívio.
Moral da história, conclui Tomás Manuel: o tio Gaspar, com aquele sacrifício, pretendia ver-se livre para sempre de todas as companhias em que tinha acreditado. Perdera a confiança na fidelidade, dali para o futuro queria-se só.
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