15 de febreiro de 2016

Utopia


Thomas More
Utopia (1516)

Como já andava cansado de me cruzar com referências a esta obra, e porque muitas dessas referências me pareciam apropriações abusivas, decidi lê-la para poder ficar com uma opinião mais fundamentada. Na verdade acabei por confirmar as minhas suspeitas, e por uma margem inesperadamente larga, embora possa admitir que diferentes leitores tenderão a encontrar neste texto sentidos opostos, sobrevalorizando o que mais lhes interessa. O próprio More escreve, nos últimos parágrafos «Porque, se de um lado não posso concordar com tudo o que disse este homem, [Utopia é escrito como um diálogo] aliás incontestavelmente muito sábio e muito hábil nos negócios humanos, de outro lado confesso sem dificuldade que há entre os utopianos uma quantidade de coisas que eu aspiro ver estabelecidas em nossas cidades.»
Produto de uma Europa que começava a alagar os horizontes medievais, De Optimo Reipublicae Statu Deque Nova Insula Utopia (O Estado Ideal de uma República na Nova Ilha de Utopia) é maioritariamente o relato fantástico de Rafael Hitlodeu, um viajante português por mares distantes, que afirma ter passado cinco anos nesta ilha, uma sociedade «perfeita», da qual faz a apologia. A república de Utopia – que mais parece uma monarquia electiva, governada por um príncipe vitalício –, registava, nos seus anais, 1760 anos de história, desde a fundação até à narrativa. Uma história imutável, porque as suas bases, estabelecidas por Utopus, o fundador, foram rigorosamente seguidas desde então (nem poderia ser de outra forma, uma vez que a perfeição fora atingida). O relato, dividido em curtos capítulos explicativos dos mecanismos sociais de Utopia – a organização administrativa, a distribuição do trabalho, a guerra, a religião, etc. –, é um espelho das preocupações filosóficas da época, do humanismo nascente, e, simultaneamente um reparo às enormes injustiças cometidas pela sociedade de então. A descrição de uma sociedade justa, pela inexistência de propriedade privada ou moeda corrente, poderá ainda entusiasmar algumas almas – as apropriações que acima referi –, mas como poderão elas lidar com a existência de escravatura, com uma rigidez de costumes devedora do catolicismo medieval, ou a quase inamovível divisão das classes profissionais? Na minha opinião, este livro deve ser lido sem preconceito ideológico, e, sob esse prisma, não ficará muito distante das Viagens de Marco Polo, ou de Peregrinação. O fragmento que escolhi, provocatoriamente, pertence ao trecho «Dos Escravos».

Nem todos os prisioneiros de guerra são indistintamente entregues à escravidão; mas unicamente os indivíduos pegados de armas na mão.
Os filhos de escravos não são escravos. O escravo estrangeiro torna-se livre ao tocar na terra da Utopia.
A servidão recai particularmente sobre os cidadãos culpáveis de grandes crimes e sobre os condenados à morte pertencentes ao estrangeiro. Estes são muito numerosos na Utopia; os utopianos vão mesmo procurá-los no exterior onde os compram a vil preço; algumas vezes obtêm-nos até de graça.
Todos os escravos são submetidos a um trabalho contínuo, e trazem correntes. Os que são tratados, porém, com mais rigor, são os indígenas, que são tidos como os mais miseráveis dos celerados, dignos de servir de exemplo aos outros por uma pior degradação. Com efeito, eles receberam todos os germes da virtude; aprenderam a ser felizes e bons, e, no entanto, abraçaram o crime.
Há ainda uma outra espécie de escravos, os trabalhadores pobres das regiões vizinhas que vêm se oferecer voluntariamente para trabalhar. São em tudo tratados como cidadãos; apenas são obrigados a trabalhar um pouco mais, uma vez que têm o hábito de fadiga maior. São livres de partir quando querem e nunca são devolvidos de mãos vazias.

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