7 de setembro de 2016

A Jangada de Pedra

José Saramago
A Jangada de Pedra (1986)

A Jangada de Pedra é um romance que tem como tema principal a misteriosa separação da Península Ibérica do continente europeu, e o igualmente misterioso percurso que a leva a rumar Atlântico fora. Nas primeiras páginas descrevem-se alguns prodígios sucedidos com as principais personagens da obra – Joaquim Sassa, que lança uma pedra a uma distância impossível; José Anaiço, sempre acompanhado por uma nuvem de estorninhos; Pedro Orce, que sente o chão a tremer, apesar de nenhum instrumento de medição o registar; e também um cão dos Pirinéus, Joana Carda, Maria Guavaira e Roque Lozano, todos de alguma forma ligados a pormenores insólitos. Ora, no decurso da narrativa, todos estes personagens acabam por se encontrar e associar, numa viagem nómada que percorre o território da península num grande círculo. Editado numa época em que Espanha e Portugal tinha acabado de entrar na CEE, o livro levanta subtilmente a questão, se seria esse horizonte europeu, realmente, o que mais se adequava aos interesses das nações ibéricas.
José Saramago é um autor controverso, mas, na meia-dúzia de livros que li dele, agradou-me um certo recurso ao fantástico, que me parece aparentado do realismo mágico. Depois de ter lido O Ano da Morte de Ricardo Reis e Memorial do Convento, obras maiores da bibliografia do autor, cheguei a considerar parar por aí. Afinal, seis anos depois, voltei a Saramago...

Avançaram para o interior do círculo, aproximaram-se, o risco lá estava, vivo, como se tivesse sido acabado de traçar, a terra apartada para os lados, húmida a da camada inferior apesar do sol quente. Agora estão calados, os homens não sabem que dizer, Joana Carda não tem que acrescentar mais palavras, é a vez de um acto arriscado que pode tornar em motivo de escárnio toda a sua história maravilhosa. Arrasta o pé pelo chão, arrasa o risco como uma rasoira, pisa e calca, é como um sacrilégio. No instante seguinte, diante dos olhos assombrados de todos, o risco refaz-se, recompõe-se exactamente como fora antes, os torrões minúsculos, os grãos de areia reformam-se, reorganizam-se, reocupam o seu lugar, e o risco reaparece. Entre a parte que fora destruída e o resto, para um lado e para o outro, nenhum sinal se percebe de separação dos efeitos, primeiro e segundo. Diz Joana Carda, numa voz um pouco estridente de nervosismo, Já varri o risco todo, já lhe deitei água, aparece sempre, se quiserem experimentar, até lhe pus pedras em cima, quando as tirei voltou tudo à mesma, experimentem para poderem acreditar. Joaquim Sassa baixou-se, enterrou os dedos no chão fofo, arrancou um punhado de terra, lançou-o para longe, e acto contínuo o risco restabeleceu-se. Foi a vez de José Anaiço, mas esse pediu a vara a Joana Carda, fez com ela um risco profundo ao lado do primeiro, depois pisou-o em todo o comprimento. O risco não se refez. Faça você agora o mesmo, disse José Anaiço a Joana Carda. A ponta da vara cravou-se no chão, foi arrastada, abriu uma ferida longa, logo fechada como uma cicatriz defeituosa quando a calcaram, e assim ficou. Disse José Anaiço, Não é da vara, não é da pessoa, foi do momento, o momento é que conta.

Li anteriormente:
Memorial do Convento (1982)
O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984)
As Intermitências da Morte (2005)

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