4 de setembro de 2016

Solaris


Stanislaw Lem
Solaris (1961)

De Stanislaw Lem apenas havia lido um único livro até hoje, A Nave Invencível, já lá vão demasiados anos para me recordar com clareza do argumento, tendo perdurado uma opinião positiva, apesar de o considerar um livro de leitura "difícil" – nada mau, para um leitor que acabara de completar 15 anos. Já Solaris, significava para mim o inesquecível filme de Andrei Tarkovski, que vi duas vezes, primeiro na televisão e depois no cinema, aguçando-me a curiosidade sobre a obra que lhe serviu de inspiração, na qual acabei por tropeçar, em tradução de português do Brasil.
E posso dizer que Solaris esteve à altura das minhas expectativas. Reconheci nele os pontos essenciais da adaptação cinematográfica, na história que decorre numa estação-observatório a pairar sobre um planeta coberto por um oceano plasmático, vivo, interactivo e consciente. Nessa estação permanecem três cientistas que sofrem daquilo que inicialmente tomam por alucinações, mas que são obra desse imenso organismo para além da compreensão: projecções materializadas do conteúdo cerebral do indivíduo, as impressões mais marcantes da sua memória, que o assombram e perseguem até à insanidade. É também uma estranha história de amor, entre Kris Kelvin, recém-chegado a Solaris, e Rheya, sua jovem mulher, morta dez anos antes, e inexplicavelmente materializada num ser que parece tornar-se cada dia emocionalmente mais complexo e distinto, desafiando simultaneamente a racionalidade e a linha de fronteira entre o ser humano e o seu duplicado autonomizado. Como pano de fundo – a comprovar como, tantas vezes, uma frase vale mais do que mil imagens –, os silêncios da obra cinematográfica têm aqui correspondência numa análise aprofundada do tema "contacto", com as suas implicações filosóficas, sociológicas e religiosas, tal como a identificação das armadilhas da interpretação antropomórfica, tanto mais quando o objecto desse "contacto" é um ser absolutamente ininteligível.

Quando tornei a abrir os olhos, tive a impressão de haver cochilado alguns minutos. O quarto estava banhado por uma penumbra vermelha. Fazia menos calor. Eu estava me sentindo bem, deitado, com as cobertas afastadas, inteiramente nu. A cortina só cobria metade da janela e lá, defronte de mim, ao lado da vidraça, iluminada pelo sol vermelho, havia alguém sentado. Reconheci Rheya. Usava um vestido de praia, branco, cujo tecido estava esticado no bico dos seios. Tinha as pernas cruzadas e pés descalços. Imóvel, com os braços abertos bronzeados até os cotovelos, olhava-me por entre os cílios escuros. Rheya, com seus cabelos pretos penteados para trás.
Encarei-a durante muito tempo, calmamente. Meu primeiro pensamento foi reconfortante: eu estava sonhando e consciente disso. Não obstante, preferia que ela sumisse. Fechei os olhos e tratei de varrer aquele sonho. Quando tornei a abri-los, Rheya estava sentada ao meu lado. Tinha os lábios entreabertos, como de costume, num gesto de assoviar.
Mas seu olhar era sério. Lembrei-me da véspera, quando fizera aquelas especulações a respeito dos sonhos. Rheya não havia mudado desde o dia em que a vira pela última vez. Tinha, naquela época, dezenove anos. Hoje teria vinte nove. Mas, evidentemente, os mortos não mudam, ficam eternamente jovens. Ela fixava-me com o olhar espantado de sempre. Tive vontade de atirar alguma coisa sobre ela. No entanto, apesar de se tratar de um sonho, não tive coragem – mesmo em sonho – de maltratar uma morta.

Li anteriormente:
A Nave Invencível (1964)

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