9 de febreiro de 2024

O que Há-de Ser o Mundo no Ano Três Mil


Pedro José Supico de Morais
O que Há-de Ser o Mundo no Ano Três Mil (1860)

Este livro tem uma história algo nebulosa. Foi publicado em Lisboa em 1860, sem nenhuma referência ao nome do autor na capa ou no frontispício, e era preciso ler a primeira página de texto, a "Protestação", para encontrar o nome de Pedro José Suppico de Moraes. E só na página 179 se revela ao leitor o nome do autor original da obra O que Ha de ser o Mundo no Anno Tres Mil: E. Souvestre. Na verdade, o francês Émile Souvestre escreveu Le Monde tel qu’il Sera em 1846, mas Supico de Morais (pseudónimo de Sebastião José Ribeiro de Sá) não se limitou a fazer a tradução, antes uma adaptação para o leitor português do século XIX, com alterações significativas ao texto original.
Assim, Marta e Maurício, jovem casal na contemplação da paisagem nocturna parisiense, expressam o desejo de poder ver o belo futuro longínquo, dormir durante séculos para acordar num mundo perfeito. De imediato aparece um ente demoníaco, Sir John Progresso, que se dispõe a fazer-lhes a vontade, e eis que Marta e Maurício acordam no ano 3000, numa sociedade distópica, cuja descrição fantasiosa e caricatural destina-se sobretudo a ridicularizar, pelo exagero, o materialismo da burguesia novecentista. Este admirável mundo novo, entre a sátira corrosiva e alguma nota sentimental, não se enquadra propriamente na ficção-científica, ao modo de Júlio Verne ou H.G. Wells, tem mais afinidades com as viagens fantásticas de Jonathan Swift ou Cyrano de Bergerac.

O observatorio da cidade Sem-Egual estava edificado no centro de um espaçoso jardim, e ficava em altura propria, a fim de, sem obstaculo, descobrir o horisonte.
Era nesse recinto consagrado ás lentes e ás tabellas, que o maior astronomo da capital mantinha em escrupulosa exactidão o registro civil dos corpos celestes, contendo com fabuloso escrupulo, em muitas casinholas riscadas, as allianças e a época da sua morte. A lua era ha muito tempo o particular objecto da attenção do sabio. De dia andava à procura della, e á noite ficava horas inteiras em contemplação ante o pallido astro, como dizem os poetas.
Quando Palafox, o doutor, e seus hospedes entraram, o sabio tinha a mão esquerda sobre o joelho, e a direita no movimento do telescopio pelo qual olhava em extasis com queixo caido e as farripas erguidas em volta da espaçosa calva.
— Ainda os estou vendo, dizia elle a Palafox sem se voltar; são os mesmos de hontem.
— Estaes a vêr quem? perguntou o academico aproximando-se.
— Quem? replicou Palafox, que tinha estado aopé do astrologo, o mesmo par de amantes lunaticos, que o nosso illustre amigo está observando ha oito dias, tendo sido testimunha de todos os preliminares da paixão : signaes telegraphicos pelas janellas, troca de cartas, e saltos pelos muros.
— Eil-os que se aproximam, interrompeu o astronomo. Distingo tudo perfeitamente, menos o rosto da mulher, porque está cuberto com um veu. A scena é n'um jardim. . . com um kiosque. . . Lá se assentam á sombra de uma figueira.
— Mau signal, resmungou o doutor ; é a arvore perto da qual nossa primeira mãe encontrou Satanaz!
— A mulher parece assustada. . . disse o astrólogo, sem deixar de olhar pelos vidros do telescopio, nem um momento. . . Olha em roda de si como quem desconfia.
— Dar-se-ha caso que na lua também haja maridos! observou o corretor de narizes e generos coloniaes; e voltando-se para o academico Universal, como quem se lembra de uma coisa a proposito de outra, disse-lhe : Meu doutor se me explicasseis a fórma symbolica do crescente da lua muito vos agradeceria. . .
— Silencio pelo amor de Deus, bradou o astronomo ; a lua póde ter ouvidos. . . a mulher está resolvida a sentar-se.
Neste ponto começou o seguinte dialogo entre os dois académicos :
— Muito bem! e depois. . .
— Elle pede-lhe a mão com um gesto. . .
— E ella?
— Resiste.
— É para que peça as duas. . .
— Elle da-lhe um abraço. . .
— Bom signal.
— Ajoelha a seus pés. . .
— Ora essa, exclamou Palafox, em tal caso a vida na lua não é muito differente da que passamos por este mundo.
— Parece-me que deve haver alguma identidade, interrompeu sorrindo Mauricio.
— Mas por que razão deve existir essa identidade? perguntou o dr. Universal.
Maurício respondeu, porque o telescopio retomara a sua posição horisontal, e em vez de estar voltado para a lua, está na direcção do jardim.
O astronomo recuou dando um salto de cabrito.
— O jardim! repetiu elle . . . os coqueiros! . . o kiosque! . . . a figueira! . . .
— Tudo isto está diante da nossa vista.
O astronomo correu novamente para o telescópio.
— É verdade! disse elle. . . nunca tinha reparado em similhante coisa. E pondo-se em pé, espantado como um touro saido do curro ao estacar com a praça povoada de milhares de espectadores, eis que brada :
— Mas quem será a mulher que ia deixar cair o veu? . . . Dá nova investida ao telescopio, e com um grito sáem-lhe dos labios estas palavras :
— É minha mulher!
O que o pobre homem julgava vêr na lua é o que se estava passando em sua casa.
Houve um momento de perturbação geral. Palafox e o dr. Universal olharam um para o outro, Mauricio affastou-se um pouco da scena, e o dr. Telescópio foi cair sobre uma cadeira pallido e estupefacto.
— Não era o nosso querido satellite, balbuciou elle a final com terror.
— Era o vosso jardim o campo das observações que me admiravam, redargiu Palafox.

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