3 de abril de 2015

O Castelo dos Destinos Cruzados

Italo Calvino
O Castelo dos Destinos Cruzados (1973)

Este livro é composto por duas partes: O Castelo dos Destinos Cruzados e A Taberna dos Destinos Cruzados. A primeira parte foi originalmente publicada em 1969, e reunida à segunda parte em 1973, no formato definitivo desta obra, quando Italo Calvino desistiu definitivamente de lhe acrescentar uma terceira parte, que se intitularia O Hotel dos Destinos Cruzados, por manifesto desinteresse em continuar a experiência.
Essa experiência absorvente e fatigante tratava, nem mais nem menos, de utilizar as 78 cartas do baralho de tarot como suporte do fio narrativo, uma vez que as personagens estão privadas da fala, através de uma elaboração complexa na interpretação simbólica das ilustrações contidas nas cartas. Os contos d'O Castelo são baseados no tarot pintado por Bonifácio Bembo em meados do século XV, enquanto os d'A Taberna tomam como ponto de partida o baralho de Marselha, impresso em 1761 por Nicolas Conver. Apesar das semelhanças, as ilustrações comportam diferenças importantes ao nível simbólico (como se pode comprovar pela sua representação paralelamente ao texto), que influem nos decursos narrativos dos contos. No final do livro, a própria personagem do escritor recorre ao método anteriormente utilizado pelas personagens e, ainda mais aliciante, submete Édipo, Hamlet, Macbeth e outros à mesma estrutura narrativa com resultados convincentes. Daqui se poderá concluir que o tarot, como representação do inconsciente colectivo, inclui todas os arquétipos da acção e motivação humana nos seus 21 arcanos maiores, servindo-se ainda dos quatro naipes como sintaxe de suporte, passível de tudo abranger e apropriar-se.

Considerando-se bem, tanto para o alquimista quanto para o cavaleiro errante o ponto de chegada deveria ser o Ás de Copas, que para um contém o flogístico ou a pedra filosofal ou o elixir da longa vida, e para o outro é o talismã guardado pelo Rei Pescador, o vaso misterioso que seu primeiro poeta não se deu ao trabalho de nos explicar o que era – ou não o quis dizer – e que desde então fez brotar rios de tinta de conjecturas, o Graal que continua a ser disputado entre as religiões romana e céltica. (Talvez o trovador de Champagne quisesse precisamente isso: manter viva a batalha entre O Papa e o Druida-Eremita. Não há melhor lugar para se guardar um segredo que num romance inacabado).
Logo, o problema que os nossos dois comensais queriam resolver dispondo as cartas em redor do Ás de Copas era ao mesmo tempo a Grande Obra alquímica e a Demanda do Graal. Nas mesmas cartas, um por uma, ambos podiam reconhecer as etapas da sua Arte ou Aventura: no Sol, o astro de ouro ou a inocência do jovem guerreiro, na Roda, o moto-perpétuo ou o encantamento do bosque, no Juízo, a morte e a ressurreição (dos metais e da alma) ou o apelo celestial.
Estando assim as coisas, as histórias arriscam continuamente tropeçar uma na outra, se não se põe bem às claras o mecanismo. O alquimista é aquele que para obter as modificações da matéria procura tornar sua alma inalterável e pura como o ouro; mas tomemos o caso de um doutor Fausto que inverte a regra do alquimista, faz da alma um objeto de troca e por esse meio espera que a natureza se torne incorruptível e não seja mais necessário buscar o ouro porque todos os elementos serão igualmente preciosos, o mundo é de ouro e o ouro é o mundo. Do mesmo modo, é cavaleiro errante aquele que submete suas ações a uma lei moral absoluta e rígida, para que a lei natural mantenha a abundância sobre a terra com indulgência absoluta, mas vamos imaginar um Perceval-Parzival-Parsifal que inverta a regra da Távola Redonda: as virtudes cavalheirescas serão nele involuntárias, virão à tona como um dom da natureza, como as cores das asas das borboletas, e assim, executando suas empresas com espantosa negligência, talvez consiga submeter a natureza à sua vontade, possuir a ciência do mundo como a uma coisa, tornar-se mago e taumaturgo, fazer cicatrizar a chaga do Rei Pescador e restituir a verde linfa à terra deserta. O mosaico de cartas que estamos aqui estatelados a olhar é, pois, a Obra ou a Demanda que se gostaria de levar a termo sem obrar nem demandar. O doutor Fausto cansou-se de fazer as metamorfoses instantâneas dos metais dependerem das lentas transformações que ocorriam dentro de si mesmo, e duvida de toda a sapiência que acumulou em sua solitária vida de Eremita; está desiludido dos poderes de sua arte bem como das trapaças entre as combinações das cartas do tarô. Naquele momento um relâmpago ilumina seu cubículo no alto da Torre. Aparece à sua frente um personagem com chapéu de abas largas, como esses que usam os estudantes de Wittemberg: talvez seja um clérigo errante, ou um Bateleiro, charlatão, um mágico de feira que tenha aparelhado sobre uma banca todo um laboratório de frascos desaparelhados.

Li anteriormente:
As Cidades Invisíveis (1972)
Se Numa Noite de Inverno um Viajante (1979)

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