22 de setembro de 2018

Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século

Italo Moriconi / vários autores
Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século (2000)

Esta antologia partiu da iniciativa da Editora Objetiva, do Rio de Janeiro, que convidou Italo Moriconi para a selecção dos textos. Moriconi, poeta, crítico literário e professor universitário, explica na Introdução os critérios e os métodos utilizados, e esboça um percurso do formato conto na literatura brasileira do séc. XX. Depois, em cada uma das secções, faz uma brevíssima apresentação prévia; e assim, desde o início do século até aos anos 30 numa secção, anos 40 e 50 noutra, e, a partir dos anos 60 uma secção por década, Moriconi descreve o “espírito dos tempos” que presidiu a cada época, não ocultando o seu entusiasmo com o boom do conto brasileiro a partir dos anos 60 e 70, lamentando apenas não ter conseguido incluir Guimarães Rosa, devido a restrições de direitos de autor.
Não surpreende portanto que se encontrem aqui quase todos os nomes consagrados da literatura brasileira — Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Érico Veríssimo, Clarice Lispector e, certamente, outros que o meu desconhecimento não identifica — e aqueles que faltam, como Jorge Amado, deve-se ao facto de não terem cultivado o conto com a relevância que dedicaram ao romance ou à poesia. Entre os presentes, alguns atravessam várias secções e são reincidentes, por exemplo Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles ou Sérgio Sant'Anna, com três ou mais inclusões.
No entanto, pessoalmente, prefiro de longe os contos da primeira metade do século, onde mais facilmente encontro a literatura tal como eu a entendo. Não me convencem determinados conceitos de realismo e visceralidade que passam pelo recurso sistemático à linguagem rudimentar dos guetos (uma linguagem básica para um pensamento básico que, neste português do Brasil, se torna um idioma impenetrável), ao palavrão e às cenas escabrosas assumidas como táctica de choque. Um animal atropelado e esventrado pode ser muito “visceral” (literalmente), mas nunca será inspirador; o meu conceito de arte não passa por aí. Também não sou partidário de um tipo de literatura que anda às voltas sem chegar a lado nenhum e se faz “difícil”, para aparentar uma profundidade que, frequentemente, não passa de um logro. Sem generalizar, porque evidentemente nem todos os contos mais recentes enveredam por esses caminhos, é um pouco como, em termos cinematográficos, comparar o cinema de Carl Th. Dryer (a preto-e-branco, mudo) com o de Pedro Almodóvar (símbolo de uma certa modernidade): o dinamarquês é intemporal, já o espanhol, com o decorrer dos anos, não passará de uma nota de rodapé. Pelas mesmas razões, neste livro, prefiro os contos mais antigos. Para o excerto escolhi «O pirotécnico Zacarias», de Murilo Rubião.

Um dos moços, rapazola forte e imberbe — o único que se impressionara com o acidente e permanecera calado e aflito no decorrer dos acontecimentos —, propôs que se deixassem as garotas na estrada e me levassem para o cemitério. Os companheiros não deram importância à proposta. Limitaram-se a condenar o mau gosto de Jorginho — assim lhe chamavam — e a sua insensatez em interessar-se mais pelo destino do cadáver do que pelas lindas pequenas que os acompanhavam.
O rapazola notou a bobagem que acabara de proferir e, sem encarar de frente os componentes da roda, pôs-se a assoviar, visivelmente encabulado. Não pude evitar a minha imediata simpatia por ele, em virtude da sua razoável sugestão, debilmente formulada aos que decidiam a minha sorte. Afinal, as longas caminhadas cansam indistintamente defuntos e vivos. (Este argumento não me ocorreu no momento.)
Discutiram em seguida outras soluções e, por fim, consideraram que me lançar ao precipício, um fundo precipício, que margeava a estrada, limpar o chão manchado de sangue, lavar cuidadosamente o carro, quando chegassem a casa, seria o alvitre mais adequado ao caso e o que melhor conviria a possíveis complicações com a polícia, sempre ávida de achar mistério onde nada existe de misterioso.
Mas aquele seria um dos poucos desfechos que não me interessavam. Ficar jogado em um buraco, no meio de pedras e ervas, tornava-se para mim uma idéia insuportável. E ainda: o meu corpo poderia, ao rolar pelo barranco abaixo, ficar escondido entre a vegetação, terra e pedregulhos. Se tal acontecesse, jamais seria descoberto no seu improvisado túmulo e o meu nome não ocuparia as manchetes dos Jornais.
Não, eles não podiam roubar-me nem que fosse um pequeno necrológio no principal matutino da cidade. Precisava agir rápido e decidido:
— Alto lá! Também quero ser ouvido!
Jorginho empalideceu, soltou um grito surdo, tombando desmaiado, enquanto os seus amigos, algo admirados por verem um cadáver falar, se dispunham a ouvir-me.
Sempre tive confiança na minha faculdade de convencer os adversários, em meio às discussões. Não sei se pela força da lógica ou se por um dom natural, a verdade é que, em vida, eu vencia qualquer disputa dependente de argumentação segura e irretorquível.
A morte não extinguira essa faculdade. E a ela os meus matadores fizeram justiça. Após curto debate, no qual expus com clareza os meus argumentos, os rapazes ficaram indecisos, sem encontrar uma saída que atendesse, a contento, às minhas razões e ao programa da noite, a exigir prosseguimento. Para tornar mais confusa a situação, sentiam a impossibilidade de dar rumo a um defunto que não perdera nenhum dos predicados geralmente atribuídos aos vivos.
Se a um deles não ocorresse uma sugestão, imediatamente aprovada, teríamos permanecido no impasse. Propunha incluir-me no grupo e, juntos, terminarmos a farra, interrompida com o meu atropelamento.
Entretanto, outro obstáculo nos conteve: as moças eram somente três, isto é, em número igual ao de rapazes. Faltava uma para mim e eu não aceitava fazer parte da turma desacompanhado. O mesmo rapaz que aconselhara a minha inclusão no grupo encontrou a fórmula conciliatória, sugerindo que abandonassem o colega desmaiado na estrada. Para melhorar o meu aspecto, concluiu, bastaria trocar as minhas roupas pelas de Jorginho, que me prontifiquei a fazer rapidamente.
Depois de certa relutância em abandonar o companheiro, concordaram todos (homens e mulheres, estas já restabelecidas do primitivo desmaio) que ele fora fraco e não soubera enfrentar com dignidade a situação. Portanto, era pouco razoável que se perdesse tempo fazendo considerações sentimentais em torno da sua pessoa.

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