2 de setembro de 2018

Portugal Traído

Fernando Pacheco de Amorim
Portugal Traído (1975)

De Fernando Pacheco de Amorim tinha já lido 25 de Abril – Episódio do Projecto Global, que me impressionou vivamente. Tive agora a oportunidade de ler Portugal Traído, talvez ainda mais impressionante, pela quantidade de informação habitualmente suprimida pelos historiadores do regime, quando se trata da época à qual se refere: dos antecedentes do 25 de Abril ao PREC. Um dia, esperemos que não tarde muito, haverá uma História oficial a rever e corrigir...
Para não alongar esta entrada deixo dois trechos significativos, entre os muitos que poderia seleccionar – um mais analítico e outro mais factual, ambos impossíveis de ignorar.

Os Capitães não se aperceberam, ao tomarem conta do Poder, que não passavam de continuadores da situação anterior, no que ela tinha de negativo, como o revela com toda a evidência a pressa com que alijaram os territórios ultramarinos. No grande banquete dos interesses este era o prato de resistência. Os capitães não se aperceberam que ao servi-lo estavam a obedecer ao programa dos grandes interesses internacionais: o da Rússia Soviética, que, a coberto da sua ideologia, apenas cumpre o seu programa imperialista e o do clube euro-americano que, a coberto de outros mitos, cumpre igualmente o seu.
Temos de reconhecer que a força destes mitos é tão grande que as populações de pequenos países, como o português, acabam por perder o sentido dos seus legítimos interesses, bem como o equilíbrio mental, o sentido da justa medida e até a intuição no julgamento das situações e na avaliação do valor e da integridade dos que aparecem na cena política a falarem em seu nome. O 25 de Abril é, neste domínio, um exemplo pungente. A mediocridade, a ignorância e a imbecilidade mais chapada da nova classe dirigente parece não ter sido notada pelo homem da rua (entenda-se dos centros urbanos), antes parece por ele ter sido adoptado como expressão no poder da sua própria mediocridade e insuficiência. Nesta identificação, talvez se sinta como um verdadeiro detentor do Poder, sacrificando ao que se sabe ser um erro com dolorosas consequências, o momentâneo prazer de dar satisfação à sua tola vaidade. Ocupa, por isso, quando é porteiro, um lugar no Conselho de Administração; quando é enfermeiro, um lugar na direcção do Hospital; quando é aprendiz, o de dirigente da oficina; quando é servente, um lugar na direcção da Faculdade; quando é militar, um chorudo lugar, disputado a soco, num Conselho de Administração.
Como surpreender-nos? Ao mesmo título, o coronel Vasco Gonçalves, medíocre oficial de engenharia e desequilibrado mental, ocupa a Presidência do Conselho; o comandante Jesuíno, oficial de baixa patente na Marinha e inteiramente desconhecido mesmo nesta, agarra a pasta da Comunicação Social; o major Melo Antunes, oficial igual a tantos outros, que nem pelo saber nem pelo sabre jamais se distinguira, produz um plano económico de emergência que não chegou a emergir e, a seguir, sem mais aquelas, ocupa a pasta dos Estrangeiros; um tenente-coronel farmacêutico, de uma ignorância pasmante fora da botica do Regimento, senta-se na cadeira do Ministério da Educação e Cultura de maneira tão desastrada que logo é substituído por outro que apenas dele se distingue fisicamente; e por aí fora, de cima para baixo e para todos os lados, pois em todos os postos de importância na vida do País se encontram militares medíocres, porteiros, delinquentes, lésbicas agressivas e prostitutas diplomadas. É a versão pornográfica do negativo anterior. Nesta montureira da mediocridade até os cravos se desvalorizaram. Tal é a Revolução Portuguesa que a imprensa de trusts e os trusts de imprensa, por ordem do capital que a sustenta, tanto e tanto louvou enquanto julgava que ela servia os seus interesses. A mediocridade e a insuficiência dos novos dirigentes foi cuidadosamente escondida da opinião pública internacional, pois era nessa mediocridade e nessa insuficiência que jogavam os interesses, pois só através delas era possível trair de maneira tão clamorosa e indigna os legítimos interesses do aliado e amigo.
Os senhores do Clube de Bildelberg, o Prof. Marcello Caetano, e os seus amigos, os capitães do Movimento até 16 de Março, todos foram habilmente ultrapassados pelo PC.
Acabado o processo, só haverá uma vítima digna de lástima: o Povo Português!
[...]
Ora a revolta foi, de facto, uma manifestação espontânea – e por isso não teve êxito – uma inequívoca demonstração de repulsa contra a entrega de Moçambique a um movimento terrorista que não tinha qualquer expressão representativa no interior do território.
E precisamente pela sua total espontaneidade, não surpreende que o MFA a tenha dominado em poucos dias. Estão gravadas as ordens dadas através da rádio pelo Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, general Costa Gomes, decretando o esmagamento de tão legítima sublevação popular por meio de bombardeamentos aéreos e massacres e, se necessário, com o concurso mesmo das forças militares da OUA, para as quais chegou a apelar. A tanto desceu a aberração do traidor! Sufocada a revolta, deram entrada em prisões de toda a Província milhares de pessoas, na sua maioria membros dos movimentos políticos representativos das etnias contrárias à Frelimo e numerosas personalidades. Foi grande o número de mortos, calculando-se que tenha ultrapassado os doze mil. A imprensa de Lisboa como aliás a internacional, minimizou o grave acontecimento, classificando-o de pequeno incidente provocado pelos fascistas, com a intenção de sabotarem o processo de descolonização.
A situação, embora dominada pela força implacável das fardas de traição estacionadas no território, continuou inquietante para o governo e para os dirigentes locais do MFA. O alto-comissário – que prudentemente se quedara em Luanda até ao completo esmagamento da heróica insurreição – não se atrevia a sair do palácio senão de helicóptero e, segundo se afirma, o seu estado normal era a embriaguez. A ideia dos massacres que lhe foi sugerida por Costa Gomes fica gravada na memória de Crespo. As autoridades tinham perfeita consciência de que a população, branca e preta, tinha sido dominada mas não vencida. Impunha-se, assim, quebrar de uma vez para sempre a sua resistência.
Sem que nada, na aparência, o fizesse esperar, no mês de Outubro, um banho de sangue selou o pacto diabólico logo após a instalação do governo provisório da Frelimo e da entrada no território dos 6.000 guerrilheiros que o acompanharam – de resto tão transidos de medo, pela consciência de não serem nada no imenso território e na multidão das cidades, que só se atreveram a aparecer nas ruas acompanhados pelas tropas traidoras do exército português. Surgiram, assim, em Lourenço Marques, bandos de pretos drogados e embriagados, munidos de armas de catanas e de latas de gasolina, que matavam e incendiavam, de maneira bárbara e indiscriminada. As tropas portuguesas assistiam impassíveis a estes crimes, afirmando os oficiais que as comandavam que tinham ordens rigorosas para não interferir, pois se tratava de ajustes de contas entre moçambicanos. Os dirigentes da Frelimo afirmaram que não lhes assistia a mais pequena responsabilidade nestes trágicos acontecimentos. Perante tão firme declaração só fica uma hipótese e, diga-se desde já, a mais plausível: a matança terá sido organizada pelas autoridades portuguesas locais. O alto-comissário, o pseudo-almirante Vítor Crespo, teria dado o seu aval ao plano de um grupo de oficiais esquerdistas do MFA, destinado a quebrar o moral dos seus compatriotas que segundo se afirmara, preparavam um ataque às Forças Armadas. Milhares de homens, mulheres e crianças, brancas e pretas, foram esquartejadas nas ruas de Lourenço Marques. Viram-se corpos humanos pendurados nos talhos da cidade e a avenida que conduz ao aeroporto, na extensão de alguns quilómetros, foi ornamentada com cabeças humanas espetadas em paus. Era tal o número de mutilados que chegava ao hospital Miguel Bombarda, que os depositavam nos corredores e nos pavimentos das salas, a esvairem-se, enquanto os médicos com as batas cheias de sangue e os olhos cheios de lágrimas, procuravam minorar os seus sofrimentos. Ante tão pavorosa hecatombe, o pessoal médico do hospital exigiu, sob pena de se refugiar nas representações diplomáticas acreditadas em Moçambique, que o chefe do governo provisório, Joaquim Chissano, comparecesse no hospital para se dar conta da extensão do crime e de tamanho horror. Perante o calvário que se lhe deparou, Chissano saiu a soluçar, salpicado pelo sangue dos que eram também suas vítimas.
A imprensa de Lisboa e a imprensa internacional limitaram-se a transmitir os comunicados oficiais, dando a entender que se tratara de um pequeno incidente, perfeitamente compreensível num quadro de passagem do colonialismo à liberdade. O número de mortos que, de forma comedida, lamentavam, afirmava-se ser de cerca de 80, a que juntavam alguns feridos, para dar, uma certa credibilidade à informação. Escondeu-se, assim, à opinião pública nacional e internacional que tinham sido barbaramente assassinadas mais de 2.500 pessoas, só em Lourenço Marques, ante a indiferença criminosa das Forças Armadas. Onde se terão escondido os bons sentimentos das comissões humanitárias, os zelos desinteressados dos correspondentes estrangeiros em Lourenço Marques, a piedade e o sentido de justiça dos padres Hastings, tão espontaneamente mobilizados à mais pequena calúnia, para agora se calarem ante a verdade?

Li anteriormente:
25 de Abril – Episódio do Projecto Global (1996)

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