29 de setembro de 2019

Eusébio Macário

Camilo Castelo Branco
Eusébio Macário (1879)

Eusébio Macário representa, na obra de Camilo Castelo Branco, uma incursão na literatura realista – tal como os livros seguintes A Corja e A Brasileira de Prazins. É. No entanto, curioso atentar no que escreve o próprio autor no Prefácio da 2.ª edição quanto ao assunto; por um lado, sabendo-se que o romantismo tinha, pela sua pena, particularidades que o afastavam da ortodoxia, afirma, perante a citação de um familiar não identificado que lhe resumia em traços largos as características do realismo/naturalismo, a propósito de Zola: “Compreendi, e achei que eu, há vinte e cinco anos, já assim pensava, quando Balzac tinha em mim o mais inábil e ordinário dos seus discípulos.” E também, sobre o presente livro: “O tímido autor esperava que os artistas não refugassem a obra tracejada, e afirmassem que eu, nesta decrepidez em que faço ao estilo o que os meus coevos de juventude fazem ao bigode, não podia penetrar com olho moderno os processos do naturalismo no romance. Ora a coisa em si era tão fácil que até eu a fiz, e tão vaidoso fiquei do Eusébio Macário que o reputo o mais banal, mais oco e mais insignificante romance que ainda alinhavei para as fancarias da literatura de pacotilha. Se eu o não escrevesse de um jacto, e sem intermissões de reflexão, carpir-me-ia do tempo malbaratado.” E, apesar de acrescentar, de seguida, que não intentou ridicularizar a escola realista, é difícil não considerar que Camilo lhe deu aqui, no mínimo, uma torção jocosa.
Com uma galeria de personagens caricatos, a novela Eusébio Macário tem entre os principais protagonistas o farmacêutico do mesmo nome, em S. Tiago da Faia, uma aldeia de Cabeceiras de Basto. O farmacêutico, viúvo, tem dois filhos: José Macário, o Fístula, que após uns anos entre os estudos e a boémia bracarense decide tomar a sério o negócio do pai, e Custódia, uma rapariga espevitada em idade casadoira. Há também um padre pouco religioso, Justino, que vive amantizado com Felícia, uma mulher por quem tivera uma paixoneta antes de ir para o seminário. Entretanto, regressa do Brasil o comendador Bento Montalegre, irmão de Felícia, com uma fortuna imensa que lhe permite comprar o título de barão. O “brasileiro” tenta seduzir Custódia, mas a rapariga não se deixa comprar porque vislumbra a oportunidade de se tornar baronesa, e Bento, que cede ao amor, não tem outro remédio senão pedi-la em casamento, mudando-se depois o casal para um casarão que o barão comprou no Porto... As peripécias sucedem-se, num instantâneo mordaz de um Portugal saído das convulsões entre liberais e absolutistas, no segundo quartel do séc. XIX, instalada já a partidarite bronca, da qual Eusébio Macário é um exemplo rematado, tendo como pano de fundo uma certa tacanhez rural de materialismo rasteiro, no fundo equivalente ao jogo de falsas aparências do meio urbano, mais polido, mas onde o verniz estala com grande facilidade.
Gostaria de ter citado abaixo o discurso que Eusébio Macário dirige ao genro, no banquete do casamento da filha, depois deste último lhe ter comprado uma condecoração do reino; o texto, imperdível, é no entanto demasiado extenso para este espaço – além de conter uma série de alusões a factos históricos que é necessário conhecer, para apreciá-lo inteiramente.

Eusébio Macário passou a botica. O genro exigira-lhe e ele condescendera sem excitação. Sentia-se outro homem. O baronato da filha dera-lhe a vaidade legítima de a ter fecundado, via em si um produtor com predestinação; não podia ser mera casualidade aquela brisa forte da fortuna que lhe ventara um ror de prosperidades, coroando-lhe a Custódia que parecia destinada a dar em droga, e armando-o a ele Cavaleiro de Cristo. Achava-se na roda dos titulares e dos capitalistas. Polia-se sem saber como. A fortuna insensivelmente dava-lhe um verniz que lhe ocultava os laivos da ignorância e da bruteza aldeã. Lia a política do dia, interessava-se, discutia na Assembleia Portuense de que o fizeram sócio, e jogava o gamão com o presidente da Câmara, o conde de Alpendurada, seu correligionário ardente, ou com o visconde de Vila Verde que o admirava nos alvitres políticos. As vezes, os três discordavam, pegavam-se e tinham questões azedas no Palheiro, a discutirem qual dos dois Cabrais era o marquês de Pombal. Desconchavavam-se também sobre posturas municipais, tendentes à sanidade pública. Eusébio Macário vencia-os sempre com os seus conhecimentos de farmácia, citava autores, e explicava o efeito dos gases nocivos à respiração. Incomodava-o, porém, a própria inércia: queria ser prestadio aos seus concidadãos, provar a sua capacidade, pôr a mão na coisa pública; achava-se com dotes para camarista, e confiava a sua sorte à fortuna nem sempre discreta com as grandes capacidades. O Mota Prego dizia-lhe que se fizesse ouvir a miúdo, que granjeasse a pouco e pouco a aura pública, e contasse com o Porto que era o clima por excelência dos homens da sua têmpera. Consultava o genro. O barão dizia-lhe que comesse e bebesse, e que se deixasse de asneiras.

Li anteriormente:
Amor de Perdição (1862)
A Queda dum Anjo (1866)

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