7 de agosto de 2014

Aparição

Vergílio Ferreira
Aparição (1959)

Narrado na primeira pessoa por Alberto Soares, um professor colocado em Évora - provavelmente um alter-ego do autor, também ele professor -, Aparição é uma ruminação existencialista sobre as suas dúvidas pessoais. Como comenta uma outra personagem, quando o narrador compra uma casa isolada - esse é o sítio ideal para ele: "Está isolado, pode meditar em sossego sobre o espantoso milagre de estar vivo e o incrível absurdo da morte."

Saí enfim para a noite, Chico saiu comigo. E, enquanto subíamos a rua, falou-me de si, falou-me de Évora. Estava ali há cinco anos, era engenheiro, trabalhava na Direcção dos Monumentos. Évora era uma cidade absurda, reaccionária, empanturrada de ignorância e de soberba. Em Évora – tinham-lhe dito um dia – não se podia ter mais do que a quarta classe nem menos que 300 porcos.
– Qualquer iniciativa cultural é logo abafada de desprezo e de banha.
O peso da Idade Média enegrecia ainda as almas, e os mouros também. Ter meia dúzia de amantes era para aqueles sultões um sinal de abundância. E havia damas que durante anos não saíam à rua, ou saíam apenas pela Semana Santa. Muitas casas tinham jardins. Pois visse eu se os descobria. Cercavam-nos de muros altos como a toda a sua vida. Criar relações em Évora era um milagre. Tudo ali tinha muralhas: a sociabilidade, os jardins e, enfim, a própria cidade. Mas de vez em quando aquela gente ia a Lisboa. E então era vê-la desabafar: casinos, teatros, ceias. Depois recolhiam ao mosteiro. Havia damas que nunca se viam na rua. Vira-as ele, Chico, fumando e bebendo no Estoril. Évora era a Quaresma e Lisboa o Carnaval. Ora bem, ele, Chico, e alguns amigos não desistiam de importunar a embófia gorda daqueles senhores. Falhara em tempos o Círculo de Cultura Musical. Falhara o Cinema Clássico. Mas iam atacar outra vez. Agora, com uma série de conferências na Harmonia. Poderia eu colaborar?
Vagueámos pela cidade morta, de arcadas desertas.
Disse enfim ao caloroso homem:
– Ignoro tudo de Évora. Mas sinto que você exagera. Por ora sei apenas que é uma cidade fantástica. E quanto às conferências, decerto estou pronto a colaborar.

Li anteriormente:
Manhã Submersa (1954)

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