4 de agosto de 2014

Lendas de Portugal, vol. 1

Gentil Marques
Lendas de Portugal, vol. 1 (1962)

O primeiro de cinco volumes de recolha de lendas populares portuguesas, recontadas por Gentil Marques numa linguagem simples e acessível. O primeiro tomo é dedicado às Lendas dos Nomes das Terras. O excerto que se segue pertence à Lenda do Bom Jardim dos Coelhos, relativa ao solar de Sergude, em Felgueiras.

Estremeceu. Um suspiro fundo fê-lo voltar a cabeça. Parecia ter ouvido soluçar baixinho. Talvez fosse o ruído das árvores, receosas da noite invernal que não tardaria. Andou uns passos mais e entrou na clareira florida que ficava ao cimo da álea dos lilases. E o seu coração quase parou. Uma dama envolta num véu espesso e cinzento parecia chorar, encostada a uma frondosa árvore. Gonçalo aproximou-se mais. Ela parecia não dar pela presença do jovem. Ele falou-lhe num tom de delicada surpresa:
– Senhora! Em que pode servir-vos o meu braço?
A dama levantou a cabeça. Sem pressas. Altivamente. E logo a baixou de novo, num gesto súbito. Gonçalo não pôde ver-lhe a expressão do rosto com nitidez. Mas a sua voz, estranhamente em surdina, chegou aos seus ouvidos:
– Deixai-me só, jovem fidalgo! Preciso descansar.
Ele porém insistiu, levado pela surpresa de ver no seu solar uma dama desconhecida:
– Perdoai, mas... gostaria de saber como chegastes até aqui.
– Andando... como vós!...
– Sois visita da nossa casa?
– Conheço-vos há muito!
– E poderei saber quem sois?
A dama do véu cinzento silenciou um breve instante, mas respondeu por fim:
– Dir-vos-ei apenas que alguém do vosso sangue muito mal me causou!
Gonçalo Coelho mostrou-se ainda mais surpreendido:
– Alguém do meu sangue? E quem?
A dama não respondeu. Ao longe soou uma gargalhada fresca. Ruído de vozes denunciavam a presença distante de um grupo turbulento.
Como que numa desculpa, o jovem fidalgo olhou o local donde partira a gargalhada e disse apenas:
– Brincam e riem sem preocupações...
Voltou a dama a falar, sentenciosamente:
– A jovem que ora ri, talvez chore dentro de pouco tempo!
Gonçalo elucidou:
– A jovem a quem vos referis, senhora, é minha prima-irmã, D. Leonor de Alvim.
Houve um ligeiro assentimento de cabeça da parte da dama velada:
– Eu sei. E com ela passar-se-á algo de misterioso... depois de casar...
– Sabeis então que Leonor vai casar com Vasco Gonçalves Barroso?
– Sim... mas enviuvará ainda donzela.
A surpresa subiu ao auge na expressão de Gonçalo Coelho.
– Que dizeis? Não pertence ao passado nem ao presente tal acontecimento!
A dama pareceu sorrir.
– Mas pertence a um futuro muito próximo.
– Como o sabeis?
– É fácil para quem vê o mundo como eu o vejo... mesmo através deste meu véu espesso...
Então Gonçalo, num impulso instintivo, avançou até junto da dama desconhecida. Mas não lhe tocou. Pediu apenas:
– Senhora! Dizei-me quem sois e porque estais aqui!
Ela não respondeu. Ergueu o busto e pareceu absorta na contemplação da paisagem. A aragem corria fresca, fazendo bater a ramagem das árvores. Gonçalo tentou quebrar o mutismo em que a sua interlocutora parecia querer refugiar-se.
– Decerto não ignorais que estais no solar da família de Pêro Coelho...
A dama fez com a cabeça um sinal afirmativo e declarou:
– Venho aqui todos os anos neste dia.
Depois houve uma pausa. E logo uma pergunta lenta:
– Sabeis que dia é hoje?
– Se o sei! Sete de Janeiro...
A desconhecida interrompeu com um gesto a palavra de Gonçalo.
– Não vale a pena ficardes preso a dolorosas recordações. Calai então o dia de hoje. Ide folgar com vossos irmãos e primas, senhor fidalgo! Ide, Gonçalo Pires Coelho, e deixai-me só!
Gonçalo inclinou-se com galhardia.
– Senhora! De modo algum devo esquecer que estais no solar dos Coelhos. Melhor direi, como dizia o senhor meu pai, no «Bom Jardim dos Coelhos»...
– Calai-vos, por favor... Hoje é um mau jardim... Será sempre um mau jardim, no dia de hoje!
A voz dele revestiu-se de espanto sincero.
– Não vos compreendo, senhora! Pretendo apenas receber-vos como mandam as regras da fidalguia.
A misteriosa dama voltou a suspirar. Pareceu de novo interessada pela paisagem. Mas, voltando-se de repente para o jovem Gonçalo, pediu com voz ansiosa:
– Se querei, de facto, fazer-me grande mercê, deixai-me só até ao fim deste dia. Não consenti que mais alguém venha perturbar o meu repouso. Fazei cientes disto a todos desta casa: uma vez em cada ano, durante as horas do sol-posto, virei aqui. E peço-vos por tudo: que ninguém ouse perturbar esta minha visita. Ninguém... sob pena de grandes desgraças! Sob pena mesmo do vosso solar deixar de ser um Bom Jardim e transformar-se, para sempre, num Mau Jardim...
Gonçalo olhou com assombro a dama velada.
– Que estranhas as vossas palavras, senhora! Poderei, ao menos, saber quem sois?
Numa voz repassada de sofrimento, a dama desconhecida declarou:
– Pois já que o desejais saber, senhor fidalgo... chamo-me Inês!
Um arrepio forte percorreu o corpo de Gonçalo Pires Coelho. Olhou melhor a singular figura, como a querer descobri-la através dos seus véus espessos, e pareceu-lhe encontrar traços de um rosto que vira em alguns retratos.
Inês! – pensava ele, na turbulenta confusão do seu espírito... – Seria possível? Estaria em presença de uma alma penada? Para ele, seu pai nunca fora um assassino e sim um fervoroso adorador da sua pátria, que supusera em perigo. Seu pai era recto e bom para com os outros! Se tinha insistido na morte de Inês de Castro, fora apenas para salvar dos Castelhanos o seu querido Portugal, por quem tantos heróis se tinham batido. Mas Inês, decerto, não pensaria assim. E seria mesmo Inês? Apavorado, Gonçalo Coelho fez uma longa vénia e retrocedeu sem mais olhar para trás, deixando a dama sozinha...

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