25 de agosto de 2014

Lendas de Portugal, vol. 2


Gentil Marques
Lendas de Portugal, vol. 2 (1963)

Segundo volume desta recolha de lendas populares, dedicado este às Lendas Heróicas. O excerto citado pertence à Lenda das Chaves do Castelo de Coimbra. Esta lenda passa-se após o termo do reinado de D. Sancho II, na sequência da guerra civil de 1245-47, que o opôs ao seu irmão e sucessor D. Afonso III. D. Sancho II, após tentativa de reforço da centralização monárquica do poder, foi vítima de uma conspiração destinada a depô-lo que contou com a cumplicidade do clero e do papado, que o excomungou e ostracizou. O rei deposto morreu no ano seguinte no seu exílio de Toledo, que serve de cenário a esta cena final.

Vendo-o, D. Gil Martins ergueu-se.
– Grande honra tenho em receber-vos!
Martim de Freitas pareceu não ligar ao cumprimento e perguntou em tom grave:
– El-rei D. Sancho II é morto?
Baixando a cabeça, o fidalgo confirmou.
– Sim... é morto. Que Deus tenha a sua alma em descanso!
– Vistes o seu corpo sem vida?
– Deus reservou-me mais esse desgosto!
– Pois quero eu vê-lo também.
D. Gil Martins elevou a estatura num gesto de surpresa.
– Que dizeis, D. Martim de Freitas?
Solene, o visitante confirmou:
– O que acabais de ouvir, senhor. Quero vê-lo e desempenhar-me da minha última missão.
– É assim tão urgente e... necessário?
– Sim. Trago comigo as chaves do castelo de Coimbra. Preciso que el-rei me desobrigue do meu juramento antes que o rei Afonso tome conta delas.
De olhos abertos num espanto, D. Gil Martins olhava o visitante, perguntando a si próprio se o prolongado cerco a que D. Martim de Freitas se sujeitara não dera cabo do seu entendimento. Mas logo o fidalgo, que parecia ter adivinhado as conjecturas do seu interlocutor, pôs ponto final nessas mudas interrogações.
– Senhor, creio que fui bem explícito. O que peço é justo e não pode ser-me negado!
Lá fora, a chuva miúda, impertinente, punha lama nos caminhos. E a tarde morria, com a pressa de quem não tem nem deixa saudades.
O dia que nasceu depois daquele em que Martim de Freitas chegara a Toledo não era menos triste. A chuva deixara por momentos de cair mas o vento viera substituí-la. Um vento gritante, que punha arrepios nas almas inquietas.
No cemitério, um pequeno grupo olhava com ar de assombro, e por vezes entre as lágrimas, a figura altiva de D. Martim de Freitas, agora ajoelhado junto da sepultura do que fora seu rei e rei de Portugal. O corpo estava exposto. O fidalgo português curvou-se e, entre as mãos cruzadas sobre o peito do defunto, depôs as chaves do castelo de Coimbra. Beijou-lhe as pontas dos dedos. Depois ergueu-se e falou:
– Meu rei e senhor! Enquanto vivestes, sofri pela vossa causa as maiores privações, dissimulando sempre, para dar conforto e ânimo aos meus companheiros. E assim eles continuaram no castelo que é vosso e continuaram honradamente aguentando por vós. Cumpri o meu juramento de lealdade, Senhor! Porém, agora que sois morto e não posso já entregar-vos a cidade, quero ao menos fazer-vos a entrega destas chaves para que, desobrigando-me vós, eu possa apresentá-las a vosso irmão, o conde D. Afonso, como renúncia vossa e não como triunfo de suas armas!...
Fez-se um pesado silêncio após estas palavras, cadenciadas, solenes. Havia emoção em todos os rostos desses homens habituados às agruras da guerra. Depois, silenciosamente ainda, as chaves do castelo de Coimbra foram retiradas das mãos do rei morto e a sua sepultura fechada para sempre.
Assim ficava encerrado, também, um feito de lealdade que jamais as chuvas, o vento, o pó ou a lama dos caminhos poderão destruir, apesar do esforço do tempo!

Li anteriormente:
Lendas de Portugal, vol. 1 (1962)

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