22 de agosto de 2018

O Caso de Charles Dexter Ward

H. P. Lovecraft
O Caso de Charles Dexter Ward (1941)

A produção literária de H. P. Lovecraft, distribui-se maioritariamente por contos – a língua inglesa possui diferentes palavras para traduzir "conto", de acordo com a sua extensão, que aqui seriam bem empregadas –, e uma única novela: The Case of Charles Dexter Ward, escrita em 1927 mas publicada apenas em 1941.
Numa história que parte das causas para os motivos, sem uma única descrição gráfica dos horrores que a povoam, Lovecraft leva-nos até uma Providence da primeira metade do séc. XVIII, para nos apresentar o sinistro Joseph Curwen, o esquecido antepassado de Charles Ward, que, por se dedicar a artes demoníacas foi justiçado, uma noite, pelos seus conterrâneos e apagado da memória colectiva. Cento e cinquenta anos depois, o jovem Charles Ward tetraneto e sósia do velho Curwen, fascinado pelo esoterismo, desenrola o novelo que lhe permitirá reconstituir os acontecimentos e entrar na posse dos apontamentos do tetravô. Isto abrir-lhe-á a porta para retomar as experiências demoníacas do velho, libertando forças que estão para além do seu controle, numa voragem que acabará por o possuir, quando, aos olhos dos outros, a mudança do seu comportamento passará por loucura. Será o doutor Marinus Willett, amigo da família, que descobrirá as implicações sobrenaturais do caso e conseguirá uma forma de o remediar. São dele estas palavras significativas e sempre actuais: «um homem não pode interferir com a natureza além de certos limites [porque] todo horror que criou se erguerá para destruí-lo».

Por volta de setembro, o vampirismo declinou, mas, em janeiro do ano seguinte, Ward quase se envolveu em problemas sérios. Havia algum tempo as chegadas e partidas noturnas de caminhões no bangalô de Pawtuxet eram motivo de comentários e a essa altura um acontecimento imprevisto revelou a natureza de pelo menos uma das suas cargas. Num local solitário, perto de Hope Valley, ocorreu uma das frequentes e sórdidas emboscadas a caminhões por obra de assaltantes visando carregamentos de uísque, mas dessa vez os bandidos estavam destinados a levar um enorme choque. Pois, ao serem abertas, as longas caixas roubadas revelaram um conteúdo extremamente asqueroso, em realidade tão asqueroso que a coisa não pôde ser abafada entre os membros do submundo. Os ladrões enterraram precipitadamente o que haviam descoberto, mas, quando a polícia do estado foi informada do caso, empreendeu-se uma cuidadosa busca. Um vagabundo preso havia pouco tempo, em troca da garantia de isenção de acusações adicionais, consentiu por fim em conduzir um grupo de milicianos até o local e no esconderijo improvisado foi descoberta uma coisa absolutamente asquerosa e vergonhosa. Não ficaria bem para o senso de decoro nacional — ou mesmo internacional — se o público viesse a saber o que foi descoberto por aquele grupo horrorizado. Não havia dúvidas, mesmo para policiais sem muito preparo; vários telegramas foram enviados a Washington com febril rapidez.
As caixas eram endereçadas a Charles Ward em seu bangalô de Pawtuxet e agentes estaduais e federais imediatamente fizeram-lhe uma visita com propósitos enérgicos e sérios. Encontraram-no pálido e preocupado com seus dois estranhos companheiros e receberam dele o que lhes pareceu uma explicação válida e provas de inocência. Ele necessitara de certos espécimes anatômicos como parte de um programa de pesquisa cuja profundidade e autenticidade qualquer um que o conhecesse na última década poderia comprovar, e encomendara tipo e número exigidos a certas agências que ele julgara tão legítimas quanto este tipo de coisas poderia ser. Da identidade dos espécimes ele não sabia absolutamente nada e ficou muito chocado quando os inspetores aludiram às consequências monstruosas para o sentimento público e a dignidade nacional que o conhecimento do assunto produziria. Em sua declaração ele foi firmemente apoiado por seu colega barbudo, o doutor Allen, cuja estranha voz abafada tinha mais convicção mesmo do que o tom nervoso de Charles; de modo que no fim os agentes não adotaram nenhuma medida, mas cuidadosamente tomaram nota do nome e endereço de Nova Iorque que Ward lhes forneceu como base para uma averiguação que não resultou em nada. Apenas é justo acrescentar que os espécimes foram rápida e silenciosamente devolvidos aos seus devidos lugares e o grande público jamais saberá de sua sacrílega perturbação.

Li anteriormente:
Nas Montanhas da Loucura (1936)


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